ETA, entre a entrega de armas e a dissolução
Destroçada por polícias e juízes na Espanha e França, a organização terrorista e a sua espiral de violência estarão perto do fim. A ETA parece disposta a entregar as armas. Mas o que conta é a sua dissolução. A decisão estará nas mãos dos presos.
Estaremos na véspera do desarmamento da ETA e a caminho da sua dissolução? A resposta pode demorar. Tendo perdido o mito da invencibilidade, a liquidação da ETA parece inexorável. Mas não será um processo linear.
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Estaremos na véspera do desarmamento da ETA e a caminho da sua dissolução? A resposta pode demorar. Tendo perdido o mito da invencibilidade, a liquidação da ETA parece inexorável. Mas não será um processo linear.
Está marcada para sábado, nos arredores de Baiona (Sul de França), uma cerimónia em que a ETA, através de intermediários bascos franceses — autodenominados “artesãos da paz” — entregaria um mapa da localização dos seus últimos depósitos de armas ao Comité Internacional de Verificação, coordenado pelo cingalês Ram Manikaningam, para que este o transmita à Justiça francesa. No El País, o jornalista Luis Aizpeolea escrevia que este acto de “desarmamento” abrirá “o debate interno sobre a dissolução da organização que se prolongará por vários meses”. O debate sobre o “futuro da organização”, eufemismo de dissolução, está em curso desde a declaração do fim da “luta armada” feita em 2011. Seria, diz Aizpeolea, “uma dissolução paulatina, sem comunicado público”. Um dos problemas da ETA é camuflar a derrota.
As autoridades francesas e espanholas distanciaram-se da cerimónia de Baiona. O Ministério do Interior de Madrid alega que a única decisão relevante será a dissolução da organização terrorista. Quanto às armas, deve transmitir a sua geolocalização à Justiça francesa.
Também o governo autonómico basco não participará na iniciativa, embora lhe tenha dado o seu aval e, segundo o mesmo jornalista, tenha informado Mariano Rajoy dos pormenores da operação.
Ontem, os partidos e sindicatos do País Basco e de Navarra — à excepção do Partido Popular — promoveram uma sessão em que foi lido um manifesto comum, afirmando que o “desarmamento da ETA é um marco histórico” para um “final ordenado e definitivo da violência terrorista”.
A ETA não é o IRA
Uma anterior cerimónia, em Dezembro, foi anulada pela polícia francesa, que deteve os participantes. Por isso, o principal intermediário, o ecologista francês Jean-Noël Etcheverry, Txetx, convocou a presença de centenas de pessoas a fim de impossibilitar novas detenções. Etcheverry garantiu ao Le Monde que a ETA confiou aos “artesão da paz” a gestão do seu arsenal e a responsabilidade do desarmamento. Garante que sábado à noite, “a ETA estará totalmente desarmada”.
Após a “rendição” de 2011, a ETA tem adiado o desarmamento, exigido pelos seus aliados políticos legais do País Basco. Desejaria contrapartidas, designadamente em relação aos presos. Toma como referência os modelos do desarmamento do IRA, na Irlanda do Norte, ou das FARC na Colômbia. A diferença é que nestes casos o desarmamento foi negociado com os governos. No caso da ETA não há negociação. Porquê? A ETA está derrotada.
Enquanto teve força e o Governo espanhol parecia disposto a fazer grandes concessões, a ETA usou as tréguas para ganhar tempo e reforçar-se organizativamente, lançando a seguir campanhas de terror em larga escala. Depois de derrotada, tentou uma desesperada negociação, em 2014, quando enviou a Oslo os seus três dirigentes da altura, para acabarem a ser mandados embora pelo Governo norueguês.
Há também dúvidas sobre o arsenal da organização. Entre 2001 e 2004 a polícia francesa apreendeu mais de mil armas de fogo e 6000 Kg de explosivos; entre 2005 e 2016, capturou 379 armas de fogo e mais de 8000 kg de explosivos.
O papel dos presos
Segundo Florencio Domínguez, jornalista e historiador da ETA, depois de perder os seus “esconderijos estratégicos”, a organização dispersou o resto do armamento por pequenos depósitos em casas de habitação ou nas montanhas. “Nem a própria ETA sabe já quantificar o seu próprio armamento”, conclui.
Na sequência da derrota imposta pela polícia e pela Justiça, com sucessivas vagas de prisões que a decapitaram, a organização estará reduzida a um escassa dúzia de operacionais em França, na maioria sem experiência.
Hoje pesam duas entidades. O movimento abertzale (nacionalista) legal, centrado na coligação eleitoral Bildu, passou de dominado a dominante. Deixou de seguir as ordens dos “militares”. E, com o aparelho destroçado, a mais importante sede de decisão da ETA passam a ser os presos: 280 na Espanha e 80 em França. Tudo indica que terão a palavra final.
O colectivo dos presos está dividido e os “duros” condenam o desarmamento e, por maioria de razão, uma dissolução. Mas a aspiração da maioria será a transferência para o País Basco — estão espalhados por 44 prisões espanholas e 44 francesas. Muitos poderão integrar os processos de reinserção para obter uma libertação mais rápida.
O “mito da invencibilidade”
Fundada em 1968 por jovens nacionalistas em ruptura com o Partido Nacionalista Basco e inspirados nas lutas de libertação nacional da época, a ETA nasceu sob o signo de um mito — a “ocupação espanhola”. Conheceu cisões. Venceu a corrente “militarista” que identificava a organização com o terrorismo.
A ETA político-militar (ETA p-m) renunciou à luta armada e integrou-se na democracia em 1982. A ETA militar (ETA m) criou o “mito da invencibilidade”. Não esperava derrotar o Estado mas acreditava que este seria incapaz de a vencer por meios policiais e seria obrigado pela sociedade a ceder às suas exigências.
A ETA nasceu durante o franquismo, que lhe deu uma justificação política. Mas só se tornou verdadeiramente letal com a democracia e o estatuto de autonomia basca. Das suas 845 vítimas, apenas 5% foram assassinadas durante a ditadura (1968-75). A sua actividade mais frenética foi durante a Transição (1976-81): 336 mortos. Na recta final (1995-2010) ainda matou 98 cidadãos, sendo o País Basco o principal “teatro de guerra”: foi a era do tiro na nuca, que provocou uma revolta dos cidadãos que isolou a ETA.
A estratégia da “socialização do sofrimento” visava tornar os cidadãos reféns pela violência, para os forçar a ceder aos objectivos da minoria. Centenas de pessoas só podiam sair à rua com escoltas. A ETA recolheu informações sobre 16.000 alvos potenciais de atentados.
Como identificar a ETA? Respondeu o antropólogo basco Juan Aranzadi: “A violência constitui a certidão de nascimento da ETA e o seu exclusivo e permanente meio de auto-afirmação. A ETA não é uma organização política que pratica a violência, mas um grupo armado que racionaliza politicamente as acções violentas.”
O escritor Kepa Aulestia, antigo dirigente da ETA (p-m), escrevera o mesmo em 1993. “A espiral da violência ganha vida própria. Como se tratasse de um alienígena, entranha-se no corpo político e ideológico inicial, entranha-se nos mecanismos de decisão e organização, nas relações humanas e em cada pessoa. Assim se ideologiza, se socializa, se individualiza, dotando-se dos nutrientes necessários e das defesas precisas para perpetuar-se.” Por isso, “a eventualidade de abandonar as armas ou de desaparecer constituem os dois tabus mais importantes da ETA”. Assim foi até hoje.