No bairro da Jamaica sobem-se escadas às apalpadelas
Moradores de quatro bairros na área metropolitana de Lisboa uniram-se para exigir direito à “habitação condigna”. IHRU diz que Prohabita tem verbas para autarquias fazerem realojamentos, mas não revela quanto
Aurora Coxi quer fazer um convite ao presidente da Câmara Municipal do Seixal e ao presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU): “Venham passar uma semana numa das casas do bairro da Jamaica”, diz em frente a um dos blocos de “prédios” onde um café serve de ponto de encontro, jovens vendem desodorizantes e mulheres cortam pedaços de jaca de São Tomé. “É para terem a noção do porquê de estarmos desesperados. Só conseguem sentir esta realidade na pele se fizerem essa troca. Ficavam um dia e fugiam!”, ironiza.
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Aurora Coxi quer fazer um convite ao presidente da Câmara Municipal do Seixal e ao presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU): “Venham passar uma semana numa das casas do bairro da Jamaica”, diz em frente a um dos blocos de “prédios” onde um café serve de ponto de encontro, jovens vendem desodorizantes e mulheres cortam pedaços de jaca de São Tomé. “É para terem a noção do porquê de estarmos desesperados. Só conseguem sentir esta realidade na pele se fizerem essa troca. Ficavam um dia e fugiam!”, ironiza.
Aos 26 anos, Aurora Coxi tem o filho mais novo, de sete meses, ao colo. Mãe solteira, partilha casa há pouco tempo com a irmã, nos prédios em frente aos blocos do Jamaica – ou bairro do Vale de Chícharos – no Fogueteiro. Aurora saiu dali depois de anos a viver num apartamento com vários problemas de humidade, e onde continuam a viver parte da família e amigos. A falta de condições das casas, como o excesso de humidade, infiltrações nas paredes e no chão e a ausência de ventilação, já provocaram problemas de saúde a crianças e adultos. Entra-se num dos apartamentos e o ar pesado, a humidade, chegam imediatamente ao corpo.
Por isso Aurora, e moradores de quatro bairros da área metropolitana de Lisboa – o Jamaica, no Seixal, o Bairro 6 de Maio, na Amadora, o Bairro da Torre e Quinta da Fonte em Loures – assinaram uma carta que enviaram a várias entidades, incluindo ao Presidente da República, para exigir o direito a uma “habitação condigna”, como prevê a Constituição e como as Nações Unidas vincaram sobre Portugal numa visita recente. A ideia é alargar a bairros com as mesmas problemáticas em todo o país, explicou uma das entidades que apoia, a Habita.
Apesar de terem características diferentes, os bairros que se juntaram sob o chapéu Assembleia de Moradores dos Bairros querem “ser realojados com respeito" nuns casos, e querem que as casas sejam reabilitadas noutros. Exigem também participar no processo de reavaliação do Programa Especial de Realojamento (PER) de 1993, que tinha como objectivo erradicar as barracas das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. “Não queremos ser realojados em novos guetos, distantes dos centros urbanos e afastados dos nossos lugares de trabalho”, dizem.
Por isso, foram ao IHRU esta semana. Luís Gonçalves, vogal do Conselho Directivo daquele instituto que esteve na reunião, disse ao PÚBLICO que há verbas do programa Prohabita disponíveis para apoiar as câmaras em projectos de realojamento, mas o processo tem que ser desencadeado pelas próprias. Qual o valor dessas verbas, não especificou.
Já a autarquia do Seixal, que considera as condições em que vivem as pessoas no Jamaica de “absolutamente inqualificáveis para o século XXI”, diz, através do gabinete de comunicação, que concebeu um novo modelo de realojamento social baseado na aquisição de casas, pelos próprios, sem recurso a novas construções. Mas “o realojamento social é uma competência do Estado central, sendo que a autarquia há vários anos tem procurado que os governos desenvolvam políticas de realojamento, mas sem sucesso”. A câmara está “em condições de avançar com custos partilhados entre os vários intervenientes – as famílias, os proprietários dos terrenos ilegalmente ocupados, o Estado central” e a própria autarquia.
"Isto é o Chiado"
Entretanto, os moradores do Jamaica vão improvisando. Há uma dezena de cafés, vários estão uns ao lado dos outros. “Isto é o Chiado”, brinca Aurora ao passar pelo “quarteirão” onde se grelha comida nos pátios.
Os nove blocos de tijolo vermelho são o esqueleto de uma obra que parou nos anos 1980 por falência do empreiteiro. Diz a autarquia (PCP) que os terrenos foram vendidos pela Caixa Geral de Depósitos à empresa Urbangol, que tem um projecto de urbanização para aquela zona.
O complexo seria ocupado no início da década de 1990 por famílias de imigrantes, na sua maioria africanos das ex-colónias, que chegavam e iam construindo as suas casas, obtendo água e electricidade através de puxadas, e criando uma rede de esgotos improvisada. Neste momento, vivem 215 famílias no bairro e, segundo a Câmara Municipal do Seixal (CMS), nenhuma delas pertence aos 47 agregados registados no PER de 1993 - esses já estão todos realojados, afirmam. Depois, mais famílias foram chegando.
Nesta altura do ano anoitece por volta das 20h30, mas no Inverno fica tudo às escuras pelas 18h. Ficar tudo escuro significa não ver o degrau seguinte da escada, correr o risco de pôr o pé no sítio errado e ir parar a outro andar. Os degraus de cimento são de altura irregular. Não há corrimões. Alguns dos nove blocos têm as caixas de elevador a descoberto. Subir é ir às apalpadelas: pode-se chegar ao topo e no lugar do terraço haver outro apartamento, casa sobre casa. Mesmo assim, às escuras, crianças sobem com destreza o andar do bloco 10, à frente da mãe.
Sem luz na via pública em frente aos prédios, tornando a zona ainda menos visível, o medo da associação de moradores é que a EDP corte a electricidade em todo o bairro. Durante anos, o Jamaica usou electricidade através de puxadas. Há pouco mais de um ano, a CMS e a Associação (de moradores) para o Desenvolvimento Social de Vale de Chícharos chegaram a um acordo com a EDP, que instalou um contador por bloco. A única solução para um local onde não se podem fazer licenças de habitação era ter uma instalação eléctrica como se fosse para uma obra, diz ao PÚBLICO o gabinete de comunicação da EDP Distribuição.
Por sua vez, a câmara, que não concorda com esta solução, pôs contadores que possibilitam a leitura individual de cada habitação. Cabia à associação cobrar às famílias, mas a sua presidente, Dirce Noronha, 39 anos, viu-se numa situação da qual hoje se arrepende: muitos moradores desconfiavam, não pagavam, até porque diziam que nem direito a factura tinham. Depois bastava uma casa não pagar para o bloco todo ficar em dívida, e assim o aviso de corte se estender a todos. Desde Junho que todos deixaram de pagar. O caso agora está em tribunal, mas a EDP diz que, por enquanto, não está agendado um corte total.
“Fomos transformados em escudos humanos”, diz Salimo Mendes, vice-presidente da associação. Dirce Noronha conta que foram tempos difíceis: “Não podia sair, as pessoas ameaçavam”. Enquanto caminha pelo Jamaica, vai mostrando alguns problemas como o esgoto e o lixo. “As pessoas também têm que ter brio e consciência, nem tudo é responsabilidade da câmara”, desabafa.
Cai a noite no Jamaica. As janelas dos prédios vermelhos são os únicos pontos de luz. Os candeeiros públicos à volta estão desligados. A EDP diz ao PÚBLICO que desconhecia o corte, e que o iria resolver em breve.