Ódio e vingança em Washington empurram Senado para uma revolução perigosa
Partido Democrata promete bloquear a nomeação de um juiz conservador para o Supremo Tribunal e o Partido Republicano responde com a "opção nuclear": o fim de uma regra histórica que dá força à minoria.
Toda a gente sabe que a primeira regra do clube de combate é não falar sobre o clube de combate, mas no Senado norte-americano nem todos estão dispostos a obedecer. Na semana em que se decide a nomeação de um juiz para o Supremo Tribunal, a pancadaria verbal entre os senadores do Partido Democrata e do Partido Republicano está a fazer tanto sangue que a única saída encontrada é o fim de uma regra histórica e com implicações no futuro da democracia do país.
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Toda a gente sabe que a primeira regra do clube de combate é não falar sobre o clube de combate, mas no Senado norte-americano nem todos estão dispostos a obedecer. Na semana em que se decide a nomeação de um juiz para o Supremo Tribunal, a pancadaria verbal entre os senadores do Partido Democrata e do Partido Republicano está a fazer tanto sangue que a única saída encontrada é o fim de uma regra histórica e com implicações no futuro da democracia do país.
Antes de lá chegarmos, vamos arrumar aquele que parece ser o assunto principal, pelo menos à primeira vista: até sexta-feira, a maioria do Partido Republicano no Senado vai aprovar o nome do juiz escolhido por Donald Trump para preencher o lugar que ficou vago no Supremo Tribunal após a morte do conservador Antonin Scalia, em Abril do ano passado.
Chama-se Neil Gorsuch, tem 49 anos, e serve às mil maravilhas para confortar os corações dos que duvidaram da costela conservadora de Trump durante a campanha eleitoral – apesar das suas declarações controversas e inflamatórias, o magnata nascido em Queens e criado em Manhattan teve de fazer um esforço para conquistar os votos daqueles republicanos que preferiam ver na Casa Branca alguém como Ben Carson ou Ted Cruz, com as suas políticas marcadamente antiaborto e contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo.
Como os grandes temas que dividem a sociedade norte-americana entre conservadores e progressistas acabam por ser decididos no Supremo, a escolha dos juízes é feita com muito cuidado pelos Presidentes. Ao todo são nove, e todos ficam no Supremo até morrerem ou até se reformarem de forma voluntária, o que pode empurrar o país para um caminho mais conservador ou mais progressista durante várias décadas.
Para tranquilizar os mais desconfiados, o candidato Donald Trump prometeu nomear um juiz muito conservador para o Supremo Tribunal se fosse eleito, e foi isso mesmo que aconteceu em Fevereiro, poucos dias depois de ter entrado na Casa Branca. Mas para que essa promessa eleitoral seja mesmo cumprida, a lei exige que o Senado (a câmara alta do Congresso) aprove a sua escolha – uma tarefa que parecia simples, já que o Partido Republicano tem 52 senadores contra 48 do Partido Democrata (dois são independentes, mas costumam alinhar nas votações com os democratas).
O Congresso das obstruções
O problema é que os últimos anos não têm sido fáceis para o diálogo entre os dois maiores partidos norte-americanos – a coisa piorou após a vitória de Barack Obama em 2008 e após a reconquista da maioria na Câmara dos Representantes (a câmara baixa do Congresso) pelo Partido Republicano em 2010, mas o mais recente período de obstrução em Washington começou com a eleição de George W. Bush em 2000.
Antes disso, era mais comum que os membros do Senado conseguissem aprovar nomeações feitas por um Presidente do partido oposto, em linha com os objectivos da criação da câmara, em 1789 – uma espécie de irmão mais velho e mais responsável da Câmara dos Representantes, que com os seus 435 membros é mais indisciplinada e refém de mandatos mais curtos.
Mas o Senado não ficou imune ao ambiente de combate permanente em Washington na última década, e a gota de água final caiu no ano passado, quando a maioria do Partido Republicano se recusou a ouvir o juiz nomeado por Barack Obama para substituir Antonin Scalia – argumentando com o facto de ser ano de campanha e o último do segundo mandato de Obama, a liderança do Partido Republicano no Senado não quis sequer dar uma hipótese ao juiz moderado Merrick Garland, apesar de nada na lei impedir uma nomeação em ano de eleições.
Com essa obstrução, o Partido Republicano conseguiu duas coisas: por um lado, passou para Donald Trump a importante decisão de nomear um juiz para o Supremo Tribunal; por outro lado, enfureceu os seus opositores a tal ponto que agora o Partido Democrata está sedento de vingança e ansioso por cumprir a promessa de guerra total contra a Casa Branca, para que os seus apoiantes não percam a embalagem do sentimento anti-Trump e lhes devolvam a maioria no Senado nas eleições do próximo ano.
E é aqui que se chega ao pano de fundo da nomeação do juiz Neil Gorsuch – afinal, um assunto mais importante e com mais implicações para a democracia norte-americana do que a simples subida ao Supremo de um juiz mais conservador ou mais progressista.
Fim da regra dos 60
Apesar de haver sempre uma maioria de um partido no Senado (em caso de 50-50 quem decide é o vice-presidente dos EUA), há uma regra que reforça quem está na minoria, para que as nomeações e as leis mais importantes não sejam aprovadas apenas por uma maioria simples. Se isso acontecesse, o Partido Democrata e o Partido Republicano poderiam mudar radicalmente a face do país sempre que cada um deles estivesse em maioria no Senado, na Câmara dos Representantes e na Casa Branca (como acontece agora com os republicanos e como aconteceu com os democratas no início do primeiro mandato de Barack Obama).
Até esta semana, quando um Presidente nomeava um juiz para o Supremo Tribunal, a minoria podia adiar por tempo indefinido a discussão que antecede a votação final, através de um procedimento conhecido como filibuster, o que na prática obrigava a maioria a fazer uma de duas coisas para desbloquear o impasse: ou apresentava outro nome, mais consensual, ou tinha de convencer pelo menos 60 senadores a pôr fim a esse filibuster e, assim, seguir em frente com a votação final. Como raramente um dos partidos tem mais do que 60 senadores, essa regra obrigava a que a maioria tivesse de dialogar com a minoria.
É assim que ainda acontece com a aprovação de leis, e era assim que acontecia com as nomeações para cargos executivos e juízes federais até 2013, quando o Partido Democrata abriu o precedente e reduziu de 60 para 51 o número de senadores necessários para contrariar o filibuster nessas nomeações. Foi uma vitória a curto prazo que permitiu à maioria de então aprovar quase todas as nomeações de Barack Obama sem problemas, mas essa decisão voltou agora para assombrar os democratas, permitindo à actual maioria aprovar os nomeados por Trump.
Apesar de tudo, em 2013 a maioria do Partido Democrata excluiu as nomeações para o Supremo Tribunal dessa alteração – para que a maioria consiga aprovar um juiz do Supremo perante um filibuster, continuam a ser necessários 60 senadores para encerrar o debate e dar início à votação.
Mas isso deverá mudar no final desta semana, prometem os republicanos, ameaçando accionar aquilo a que nos Estados Unidos se chama "opção nuclear": como os democratas anunciaram que vão usar o filibuster para travar a nomeação do juiz Neil Gorsuch, o Partido Republicano anunciou que vai acabar com o que restava da regra dos 60 nas nomeações – vão bastar 51 senadores para aprovar a nomeação de Neil Gorsuch e o Partido Republicano tem 52.
Guerra sem fim à vista
A nomeação de Neil Gorsuch vai restabelecer o ascendente de juízes conservadores no Supremo norte-americano, ao fim de um ano com apenas oito juízes – quatro liberais progressistas e quatro conservadores. Para além de os democratas quererem vingar a recusa dos republicanos em avaliar o juiz Merrick Garland no ano passado, o juiz escolhido por Donald Trump tem um passado de decisões favoráveis às empresas e a restrições ao direito à escolha no aborto, e é também acusado de não ser suficientemente independente em relação à Administração Trump. A senadora progressista Elizabeth Warren, que é apontada como candidata do Partido Democrata em 2020, sublinha que Gorsuch pode ver-se obrigado a tomar uma decisão sobre o futuro de Donald Trump, já que o Presidente e a sua equipa estão a ser investigados pelo FBI por suspeitas de colaboração com o Governo da Rússia.
A teimosia do Partido Democrata em forçar um filibuster esta semana pode ter um sabor a vitória a curto prazo (a vingança pela humilhação de Obama e do juiz Merrick Garland, e o reforço da mensagem para a sua base de que se mantém pronto para a luta contra Trump), mas também pode sair-lhe cara nos próximos anos. Se o Partido Republicano mantiver a maioria no Senado nas eleições de 2018 e 2020 e a Casa Branca em 2020, Donald Trump pode ver-lhe cair no colo a substituição de mais três juízes, e só precisará de 51 votos no Senado: Ruth Ginsburg, de 84 anos, e Stephen Breyer, de 78, são dois liberais e estão entre os mais velhos, juntamente com Anthony Kennedy, um conservador de 80 anos que alinha muitas vezes com os liberais.
E o pior ainda pode estar para vir. O fim da regra dos 60 para as nomeações de juízes do Supremo, somando-se à extinção da mesma regra para as outras nomeações em 2013, leva alguns dos senadores mais experientes a temer que esta escalada justifique o fim da existência de um Senado, e que a câmara alta fique entregue aos mesmos humores e obstruções partidárias que têm contaminado a câmara baixa: se os senadores de ambos os partidos não se acalmarem, é possível que alguém se lembre de propor o fim da regra dos 60 para as leis mais importantes, algo que já foi proposto no passado mas em que nunca ninguém teve a ousadia de tocar até agora.
A indignação foi resumida pelo experiente senador John McCain, do Partido Republicano, num momento em que foi apanhado pelos microfones da NBC sem saber: "Após 200 anos em que o Senado tem funcionado bem, acham que é boa ideia acabar com isto. Quem diz isso é um idiota estúpido."