O que deve um artista pôr na mala para São Paulo

Gabriel Abrantes, Bruno Cidra e Dalila Gonçalves têm direito a um foco individual na 13.ª SP-Arte, que começa nesta quinta-feira em São Paulo. A polaca Joanna Piotrowska, em representação da Galeria Madragoa, junta-se a este pequeno clube português na maior feira de arte da América Latina.

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Quando as portas do Pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera se abrirem para a 13.ª edição da SP-Arte, ao início da tarde desta quinta-feira de chuva (confiando nas previsões, mas torcendo para que falhem), os visitantes da maior feira de arte de toda a América do Sul terão à sua frente mais uma vista panorâmica sobre o até hoje bastante autocentrado mercado brasileiro. Apenas 44 das 159 galerias participantes são estrangeiras (quanto aos visitantes, a desproporção é bem mais esmagadora: 95% dos 27 mil que por lá passaram há um ano eram nacionais). 

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Quando as portas do Pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera se abrirem para a 13.ª edição da SP-Arte, ao início da tarde desta quinta-feira de chuva (confiando nas previsões, mas torcendo para que falhem), os visitantes da maior feira de arte de toda a América do Sul terão à sua frente mais uma vista panorâmica sobre o até hoje bastante autocentrado mercado brasileiro. Apenas 44 das 159 galerias participantes são estrangeiras (quanto aos visitantes, a desproporção é bem mais esmagadora: 95% dos 27 mil que por lá passaram há um ano eram nacionais). 

A internacionalização tem sido “um processo lento”, reconhece a fundadora e directora da SP-Arte no terraço da sua magnífica casa modernista, perante uma pequena plateia de jornalistas estrangeiros, mas apesar de tudo tem sido um processo, e continua em curso. Mesmo assim, em 2017 ainda se conta pelos dedos das duas mãos o número de países representados na feira: são apenas nove. Portugal é um deles e dá-se por ele mais facilmente este ano, sobretudo descendo ao piso térreo, onde entre as 16 galerias que compõem o sector Solo, o programa especial para exposições individuais de artistas contemporâneos, se encontram os stands da Baginski, da Madragoa e da Francisco Fino — e ainda as singulares colecções pessoais de Dalila Gonçalves (uma espécie de sótão: carimbos, lixas, serras, mostradores de relógio...) que a londrina LAMB Arts trouxe até São Paulo. 

Há uma razão para esta sobrerepresentação, e chama-se Luiza Teixeira de Freitas, a curadora independente brasileira, mas radicada em Portugal desde criança, que pelo segundo ano consecutivo dirige o sector Solo: “Vivo cá, trabalho cá, é claro que vou levar artistas portugueses”, diz ao PÚBLICO quando a encontramos semanas antes da feira no Gabinete, a galeria de múltiplos e livros de artista que coordena há apenas dois meses, sucedendo a Delfim Sardo.

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A curadora Luiza Teixeira de Freitas Daniel Rocha

Num sector em que o foco incide sobre os artistas mais do que sobre as galerias, Luiza voltou a evitar abordagens temáticas (“Cheguei a pensar fazer um Solo só de artistas mulheres, mas essas coisas são sempre muito forçadas”), o que permite o cruzamento entre “coisas históricas fantásticas”, como a exposição do alemão Franz Erhard Walther (que nesta mesma quinta-feira inaugura no Palacio de Velázquez do Parque do Retiro, em Madrid, uma retrospectiva comissariada por João Fernandes) “e artistas nascidos em 1992”. 

Foi, explica, “uma escolha orgânica”, formada a partir das suas próprias referências pessoais e profissionais, que às vezes se misturam naturalmente — é casada com um dos sócios da Madragoa, um facto que não esconde nem sobrevaloriza (a galeria está na Solo, com mais um capítulo da série Frantic, da polaca Joanna Piotrowska, porque “tem objectivamente um programa de internacionalização fortíssimo”, que a levou só nos últimos meses à Artissima de Turim, à Zona Maco da Cidade do México e à Arco de Madrid). De resto, e para nos concentrarmos apenas nos artistas portugueses escolhidos a dedo para este seu Solo — além de Dalila Gonçalves, Luiza foi buscar Gabriel Abrantes (Francisco Fino) e Bruno Cidra (Baginski) —, múltiplos critérios estiveram em cima da mesa, mas prevaleceu acima de todos um juízo muito prático: “Escolhi trabalhos que têm tudo para funcionar em São Paulo.”

No caso de Gabriel Abrantes (Chapel Hill, 1984), bastará que se repita o efeito da sua passagem pela última Bienal de São Paulo, onde o filme Os Humores Artificiais, sublinha Luiza, “teve uma recepção incrível”. De volta à cidade com A Brief History of Princess X, que assim reingressa no circuito artístico (a estreia mundial deu-se na Tate Britain, mas entretanto esta curta-metragem que reencena a história de uma das obras de arte mais escandalosas do princípio do século XX, a Princess X  de Constantin Brancusi, fez o seu já bastante premiado percurso em salas e festivais de cinema), Abrantes espera que esta sua primeira participação na SP-Arte lhe permita “alargar a difusão” do seu trabalho no Brasil. “Mais exposições”, diz, “seria um resultado fantástico”, mas, seja como for, interessa-lhe testar A Brief History of Princess X no ecossistema bem particular, “e bem comercial”, de uma feira de arte: “Por ter sido distribuído no circuito comercial, em Londres, com longas-metragens de grande público, o filme já fez umas 40 mil pessoas, um início invulgar que me deixou bastante feliz; uma feira é um lugar de consumo rápido, o que me parece um enquadramento muito interessante para uma obra que reflecte precisamente sobre o mundo da encomenda e da venda de arte. De resto, cada contexto tem as suas particularidades, e como sempre me movi nos interstícios do cinema popular e da videoarte, acho óptimo circular entre o museu e o cinema, a galeria e a feira.”

Ao contrário de A Brief History of Princess X, os trabalhos dos artistas trazidos pelas duas outras galerias portuguesas no Solo foram produzidos especificamente para a feira — localmente, no caso de Bruno Cidra, que passou os últimos 20 dias a trabalhar em São Paulo (e aqui ficará por mais um tempos, porque conseguiu um projecto no Pivô), e não muito longe, no Rio de Janeiro, onde Joanna Piotrowska esteve em residência no Instituto InclusArtiz. As imagens que a fotógrafa polaca fez ao longo de três semanas no Brasil prolongam a série iniciada em Agosto em Lisboa, mas acrescentam-lhe uma camada política que até aqui o trabalho não tinha, explica-nos pelo telefone: “Quando comecei a fazer esta série, queria explorar a ideia de que todos precisamos de uma casa dentro de uma casa; de um abrigo íntimo, inviolável, onde possamos refugiar-nos do próprio espaço doméstico e familiar, que muitas vezes é tão confortável quanto opressivo. Em Lisboa fotografei sobretudo amigos e amigos de amigos nos seus ‘abrigos’, mas no Brasil, onde a desigualdade é uma questão tão crucial, achei fundamental ter pessoas de vários meios, do condomínio fechado à favela. E é nítido que as ansiedades em torno do abrigo, da casa, são completamente diferentes conforme o sítio onde vives.”

Também Bruno Cidra (Lisboa, 1982) andou pela rua, mas não à procura de pessoas. “Nas primeiras semanas visitei sucateiros, serralharias, comprei ferro, recolhi objectos e fotografei muitas coisas. Depois concluí o processo de produção entre o atelier e algumas oficinas”, conta ao PÚBLICO por email, reconhecendo que a estadia noutra cidade “provoca alterações inevitáveis”, que obrigam a “abdicar de certos materiais, de formas de pensar preestabelecidas, de recursos técnicos conhecidos, para passar a improvisar mais e incluir coisas novas”. No caso de São Paulo, onde em 2013 passou quatro meses numa residência artística da Fundação Armando Alvares Penteado, a própria cidade constitui uma influência poderosa: “Possui uma série de espaços industriais que sempre me fascinaram e contribuíram para a construção do meu imaginário escultórico (ferros-velhos, sucateiros, armazéns abandonados, fundições, pequenas fábricas em bairros antigos, serralharias, carpintarias, lojas de curtumes, lojas de tecidos). E depois há factores aos quais é impossível ficar indiferente quando se está em São Paulo: a relação da cidade com a natureza, a forma como o betão vai sendo lentamente destruído pelas árvores, a escala das coisas, a relação do corpo nesta escala, a divisão quase inexistente entre o velho e o novo ou o decadente e o luxuoso...”

A formatação de um stand pode não ser a mais “cativante” para um artista que, como Bruno Cidra, tende a intervir directamente no espaço para o reconfigurar, mas, diz, também pode ser “desafiante projectar um stand inteiro como se fosse um grande desenho”. Tal como para Dalila Gonçalves (Castelo de Paiva, 1982) foi desafiante repensar a escala das suas peças, normalmente construídas por acumulação de objectos, atendendo às reduzidas dimensões do espaço que tem na SP-Arte e sobretudo aos severos “condicionalismos do transporte”. Encontrámo-la ainda no seu atelier do Porto a organizar as lixas e os carimbos usados que agora estão nas paredes do stand da LAMB Arts: “Para mim é complicado pensar em peças novas condicionada por um formato; prefiro levar peças que já tenho ou que estão em processo”, explica, acrescentando que, por muito que queira “travar a velocidade de produção que é exigida a um artista contemporâneo”, sabe que estar “na cauda do sistema artístico, e não apenas geograficamente”, a obriga “a correr um bocadinho mais do que os outros”. Uma frase de Paul Theroux, o escritor de viagens que é uma das obsessões desta artista assumidamente obsessiva — “Time is made visible, and it moves as the landscape moves” —, resume os trabalhos que agora está a mostrar na SP-Arte no stand de uma galeria inglesa, praticamente um mês depois de ter estado na Arco no stand de outra galeria estrangeira, a espanhola Rafael Ortiz. Luiza quis trazê-la a São Paulo para dar mais visibilidade internacional a um trabalho que considera não ter a visibilidade nacional “que devia ter”, e cuja omissão em colecções como a da Fundação EDP, para a qual acaba de co-comissariar a exposição O Que Eu Sou, lamenta profundamente. 

“Não sou representada por nenhuma galeria em Portugal, é um facto. Gostava, mas não é uma coisa que me faça muita dor de cabeça desde que consiga mostrar o trabalho”, comenta Dalila de passagem, antes de retomar a conversa para ela bem mais fundamental sobre o que está nas peças que meteu na mala para o Brasil, e em todas as outras da sua obra sempre em trânsito entre a escultura, a instalação, o vídeo e a fotografia: “Quando olho para as minhas exposições, lembro-me do processo que levou aqueles objectos até ali: as circunstâncias em que os encontrei, a hipotética vida anterior que tiveram antes de chegar às minhas mãos.” E estes contarão, entre outras coisas, a história de uma inesperada viagem até São Paulo.

O PÚBLICO viajou a convite da SP-Arte