Quinze portugueses sentam-se no banco dos réus acusados de tráfico de pessoas
Dois julgamentos em Abril envolvem dezenas de trabalhadores do Nepal que eram postos a trabalhar e a viver em condições precárias. No julgamento maior, há 22 arguidos e pelo menos 14 deles são portugueses. Há um outro português no segundo caso.
Os relatos sobre o tráfico de seres humanos para exploração laboral têm características comuns, nomeadamente o facto de as vítimas estrangeiras serem aliciadas com um salário superior ao que irão receber e se tornarem reféns dos patrões por causa da situação irregular como imigrantes.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Os relatos sobre o tráfico de seres humanos para exploração laboral têm características comuns, nomeadamente o facto de as vítimas estrangeiras serem aliciadas com um salário superior ao que irão receber e se tornarem reféns dos patrões por causa da situação irregular como imigrantes.
São essas também as características de dois casos que vão a julgamento este mês no Tribunal de Santarém e que envolvem dezenas de trabalhadores. Um deles, marcado para dia 18, envolve mais de 22 arguidos e 13 empresas acusadas do crime de tráfico de pessoas. Pelo menos 14 desses arguidos são portugueses, há um cidadão israelita, que seria o cabecilha inicial, e outros naturais do sudeste asiático. O caso reporta-se a uma detenção que terá sido feita em finais de Julho de 2015, numa empresa em Almeirim, e na qual oito pessoas ficaram em prisão preventiva.
O esquema relatado no despacho de acusação do Ministério Público descreve o recrutamento feito por uma empresa em Portugal que anunciava postos de trabalho no Instituto de Emprego e Formação Profissional. Entrevistavam portugueses, mas nenhum servia; ao fim de um mês o lugar ficava disponível para mão-de-obra estrangeira. Nessa altura, os trabalhadores imigrantes seleccionados iam ao consulado português dos respectivos países de origem (sudeste asiático) para obter o visto de trabalho, por via legal. Estes empresários aliciavam os trabalhadores com um salário fixo, mas cobravam-lhes entre cinco e dez mil euros para os "colocarem" a trabalhar em Portugal. Chegados a Lisboa, as alegadas vítimas tinham que assinar um contrato de trabalho, em português, que não percebiam.
Seriam os empresários portugueses a colocar os trabalhadores em várias explorações agrícolas espalhadas pelo país, do Algarve a Santarém. Instalavam-nos em casas sobrelotadas, ou em contentores, e cobravam-lhes uma renda, que descontavam do salário, mas o espaço onde ficavam era o mais barato possível: muitas vezes dormiam em contentores sem refrigeração, sem ventilação, com esgotos feitos no local e sem instalações sanitárias suficientes. No despacho refere-se que, numa das explorações agrícolas, na Comporta, ficavam seis trabalhadores asiáticos por contentor, sendo que havia dois contentores com casa-de-banho para mais de 50 pessoas, enquanto que, à parte, dormiam os trabalhadores portugueses, dois por contentor, com casa de banho privativa.
Pelo que se percebe, a determinada altura dois dos empresários portugueses ter-se-ão desentendido com o israelita e formado o seu próprio esquema. Diz-se que se deslocaram a uma das propriedades onde estavam os cidadãos, na altura a trabalhar para o israelita, e os coagiram a assinar um contrato com eles, desvinculando-se da anterior empresa.
No esquema participaria um médico, que passava atestados de medicina do trabalho falsos. Relata-se o caso de uma vítima a quem foi descoberto ser portadora de insuficiência renal, que precisaria de hemodiálise, e as posteriores tentativas de a abandonar em Lisboa sem dinheiro. A vítima, um homem, terá feito queixa num dos hospitais onde foi atendida, tendo sido depois agredida fisicamente pelos patrões no regresso a “casa”.
Ameaças físicas e verbais, coacção, controlo de movimentos, descontos não previstos no salário, salário inferior às horas de trabalho ou períodos ininterruptos de quase um mês são algumas das situações abusivas descritas que sustentam a acusação.
Um outro caso de menor dimensão que é julgado esta quinta-feira envolve 23 cidadãos nepaleses e três arguidos (dois nepaleses e um português). Fizeram parte de uma operação a que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) chamou de Pokhara. Os trabalhadores foram resgatados em Julho de 2016, e estavam em situação irregular a trabalhar e a residir numa estufa explorada em Almeirim pelo arguido português.
O recrutamento terá sido feito já em Portugal. Os contratos terão sido celebrados em português, com cláusulas desconhecidas para os nepaleses, por remuneração mensal de 530 euros, e subsídio de refeição. Mas seriam-lhes pedidos 200 e 250 euros para a Segurança Social quando chegaram, mensalmente descontados 55 euros pela dormida e entre 40 e 60 euros para a alimentação.
Segundo a acusação, o anexo onde viviam não tinha janelas, nem água canalizada ou electricidade no período da noite, e dispunha de uma única casa-de-banho com dois duches que não funcionavam: tomavam banho com baldes. Estavam longe, a pé, da aldeia mais próxima. As horas de trabalho registadas são 7h30 diárias, sendo que por vezes também trabalhavam ao domingo, nunca recebendo o total acordado. Os três arguidos são acusados de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal.