Flexibilizar o mercado de trabalho – efeitos ilusórios e equívocos teóricos

A discrepância entre os efeitos previstos e a realidade dos factos só se pode dever a erros teóricos.

Reduzir a segmentação do mercado de trabalho?

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Reduzir a segmentação do mercado de trabalho?

A reforma do sistema de proteção no emprego, nomeadamente a facilitação dos despedimentos, inscrita no Memorandum de Entendimento com a “troica” e implementada em 2011-2012, tinha como objetivos “combater a segmentação do mercado de trabalho, promover a criação de emprego e facilitar os ajustamentos no mercado de trabalho”. Reduzir a segmentação do mercado de trabalho significa, grosso modo, aumentar o número de contratos de trabalho sem termo relativamente ao número de contratos precários, o que é suposto traduzir-se numa diminuição da desigualdade entre os detentores de contratos sem termo já inseridos nas empresas e os detentores de contatos precários ou os que procuram emprego. Os economistas liberais também preveem, tal como anunciado no Memorandum, que a flexibilização do mercado de trabalho permite promover a criação de emprego, porque a diminuição da proteção no emprego facilita os despedimentos, favorecendo assim a adaptação às flutuações económicas, o que torna as empresas mais competitivas e as incentiva a recrutar.  

O tempo decorrido desde as alterações legislativas e os dados existentes permitem aferir se os objetivos previstos foram alcançados: em 2016, 82% dos novos contratos eram contratos precários; a proporção de contratos sem termo tem decrescido continuamente desde 2012 enquanto a proporção de contratos precários tem aumentado; os salários dos novos contratados em 2013 eram 11% inferiores aos salários dos que saíram das empresas; 37% dos novos contratos concluídos em 2016 ficaram-se pelo salário mínimo; e 62% dos subsídios de desemprego atribuídos pela primeira vez em 2015 correspondem ao fim de contratos a termo. Ou seja, o recurso a formas atípicas de trabalho, de precariedade, de falsos recibos verdes aumentou ao mesmo tempo que as condições salariais se degradaram, o que indicia não uma diminuição mas um reforço da segmentação do mercado de trabalho. Por sua vez, a criação de emprego, dos empregos que acabo de descrever, tem subido mais lentamente do que tem baixado o desemprego devido à emigração de mais de 400 000 pessoas entre 2011 e 2015.

Os enganos dos economistas liberais

Esta discrepância entre os efeitos previstos e a realidade dos factos só se pode dever a erros teóricos. É importante começar por referir que, como argumentado por economistas e juristas franceses (Olivier Favereau, Antoine Lyon-Caen), este movimento de flexibilização do mercado de trabalho e de “modernização do direito do trabalho” está associado a uma deriva do direito do trabalho, tradicionalmente centrado na proteção do trabalhador na empresa (causas dos despedimentos, horários de trabalho, etc.), para um direito do mercado de trabalho, centrado nos ajustamentos entre oferta e procura no mercado (diversidade de relações contratuais, reforço da empregabilidade, etc).

Ora, esta deriva prende-se com uma visão equivocada do que é, por um lado, o “mercado de trabalho” e, por outro lado, o “trabalho”. O aumento dos fluxos – entre inatividade, desemprego e emprego - no mercado de trabalho provoca logicamente uma diminuição da duração média do emprego. Ao pretender que essa diminuição permite aumentar a competitividade das empresas, os economistas liberais estão de facto a pressupor que a multiplicação das passagens pelo mercado de trabalho não afeta o envolvimento dos trabalhadores na vida da sua empresa ou, alternativamente, que o envolvimento dos trabalhadores não afeta a performance coletiva da empresa. Estes dois pressupostos são amplamente desmentidos pelos factos, como confirmado pelo discurso dominante no mundo da gestão. O engano está em considerar que o mercado de trabalho é constituído unicamente pelos fluxos de trabalhadores e em esquecer que ele também é constituído pelos chamados “mercados internos de trabalho”, os coletivos de trabalho no interior das empresas, os espaços onde se geram os fatores avançados de competitividade.

A deriva para o direito do mercado de trabalho destaca-se pela deslocação do enfoque da atividade de trabalho para a relação de emprego. Esta passou a ser encarada como uma relação bilateral centrada nos incentivos que melhor conseguem alinhar o interesse do trabalhador – o “agente” dizem os economistas liberais – com o interesse do empregador – o “principal”. A concentração das atenções na relação de emprego, em termos teóricos mas tambem de políticas públicas, levou a descurar não só a atividade de trabalho propriamente dita como também a dimensão coletiva do trabalho, esquecendo que é nesta última que assenta o binómio cooperação/inovação, vetor crítico da competitividade nos dias de hoje. Como se o trabalho humano, único verdadeiro gerador de valor, pudesse ser reduzido a uma soma de objectivos individuais quantificados e estreitamente monitorizados.

Efeitos perversos

Na realidade, a segmentação do mercado de trabalho decorre das decisões de gestão das empresas, que propõem “bons” empregos aos trabalhadores cujo envolvimento elas consideram indispensável e “maus” empregos aos outros trabalhadores. O facto dos despedimentos serem mais fáceis ou menos dispendiosos tem, como se observou nos últimos anos em Portugal, um efeito muito limitado sobre a segmentação do mercado de trabalho, a criação de emprego e a competitividade. Aliás, a retórica acerca da bondade da flexibilidade legitima as práticas diferenciadas de gestão da mão-de-obra e contribui para ocultar a importância da estabilidade contratual e dos investimentos específicos que lhes estão associados. Assim, o efeito mais notório das reformas laborais, em conjunto com a estratégia de “desvalorização interna” – diminuição dos salários para recuperar/manter a competitividade, foi o de uma desvalorização do trabalho inédita em Portugal. Quanto aos seus efeitos supostamente benéficos, esses tardam em aparecer.