Da Última Ceia de Gregório Lopes aos sabonetes Ach. Brito e ao equipamento de Pavão
O Centro de Conservação e Restauro da Universidade Católica-Porto existe desde há 15 anos, como departamento da Escola de Artes que está a assinalar o 20.º aniversário. É uma escola-oficina por onde têm passado obras e desafios que vão da arte ao desporto e à publicidade.
O que há de comum entre o equipamento do malogrado futebolista do FC Porto, Pavão, um painel em mosaico de Júlio Resende, um retrato monumental do rei D. Carlos, um anúncio vintage de sabonetes Ach. Brito, uma Última Ceia de Gregório Lopes, um retábulo da Igreja de Tancos, ou um Cristo de corpo carcomido e já sem um braço? São alguns dos 1490 lotes de peças que foram analisadas, tratadas, restauradas e conservadas ao longo dos últimos 15 anos no Centro de Conservação e Restauro da Universidade Católica Portuguesa (CCR/UCP), no Porto.
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O que há de comum entre o equipamento do malogrado futebolista do FC Porto, Pavão, um painel em mosaico de Júlio Resende, um retrato monumental do rei D. Carlos, um anúncio vintage de sabonetes Ach. Brito, uma Última Ceia de Gregório Lopes, um retábulo da Igreja de Tancos, ou um Cristo de corpo carcomido e já sem um braço? São alguns dos 1490 lotes de peças que foram analisadas, tratadas, restauradas e conservadas ao longo dos últimos 15 anos no Centro de Conservação e Restauro da Universidade Católica Portuguesa (CCR/UCP), no Porto.
Departamento da Escola das Artes da UCP, este centro fundado em 2002 é um dos três – juntamente com o da Universidade Nova de Lisboa e o do Instituto Politécnico de Tomar – que actualmente oferecem licenciatura (e mestrado) na área da conservação e restauro no nosso país.
Tem uma centena de alunos, cerca de um quarto de quantos frequentam o conjunto das valências da Escola das Artes, e oferece a mais-valia da associação da componente lectiva com a actividade profissional de conservação e restauro aberta a todos quantos aí pretendam submeter o seu património, seja ele a necessidade de colar uma simples peça da Vista Alegre ou a tarefa complexa de restaurar uma tela centenária degradada pela passagem do tempo e pela acção humana.
“Termos prestação de serviços e ensino num registo paralelo é visto como uma vantagem, porque os técnicos têm a possibilidade de estar em acções de formação promovidas pelo ensino; ao mesmo tempo os alunos percebem o que é trabalhar profissionalmente”, realça Laura Castro, professora, historiadora de arte e directora da Escola das Artes da UCP-Porto.
A assinalar o seu 20.º aniversário, a escola inaugura esta quinta-feira uma galeria de arte, com a exposição colectiva Input 6417, comissariada por Baltazar Torres. Mas foram as instalações do CCR que o PÚBLICO foi agora conhecer, numa visita guiada por Laura Castro e por Carla Felizardo, directora do centro, a pretexto da organização, entre esta quarta-feira e sexta-feira, e já em sexta edição, da Semana da Conservação. Com um programa que se propõe mostrar e documentar diferentes abordagens neste sector, a iniciativa tem como principal convidada a italiana Roberta Lapucci, professora e investigadora do Studio Arts College International (SACI) de Florença e uma especialista na obra de Caravaggio – sobre quem fará uma conferência, esta quarta-feira, às 14h30.
Buracos preenchidos com papel de jornal
Pelas salas e oficinas do CCR da Católica não passou ainda nenhuma obra do grande mestre italiano do barroco, nem de nenhum dos grandes mestres da pintura europeia. Mas passaram já trabalhos de Gregório Lopes (c. 1490-1550), de Simão Rodrigues (c. 1560-1629), de António Carneiro (1872-1930). E também do pintor portuense José Teixeira Barreto (1763-1810), autor da pintura S. Francisco a entregar as regras aos beatos Luquésio e Buonadonna (1799), pertencente à igreja privativa da Ordem Terceira de S. Francisco.
É sobre esta tela de grandes dimensões (3x8,2 m) que se debruçam, desde há já seis meses, três membros da equipa do CCR, entre professores e alunos. “A obra estava no altar-mor da igreja; é guardada num tambor de madeira que é desdobrada conforme as necessidades do culto”, diz Carla Felizardo. Isso explica que a peça tivesse chegado ao CCR em muito mau estado de conservação, situação agravada por sucessivas intervenções ao longo do tempo. E essas marcas são ainda visíveis na tela estendida no chão: repintes pontuais e buracos preenchidos com tecidos diversos, e até com bocados de jornal (de 1884 e de 1893).
“Preferimos sempre trabalhar sobre telas mesmo que muito danificadas pela passagem do tempo do que aquelas que tenham sofrido intervenções humanas”, nota Carla Felizardo, lembrando que antigamente não havia as preocupações estéticas e éticas que hoje são indispensáveis. “E nós não queremos, nem podemos falsificar a história das peças”, acrescenta.
No percurso pelas seis grandes salas de aulas, laboratórios e oficinas no piso zero do edifício projectado especificamente para o CCR pelo arquitecto Humberto Vieira, alunos e professores trabalham casos bem diferentes. Numa das salas, um álbum de capa envelhecida guarda inesperados rótulos de variados produtos da fábrica portuense Ach. Brito: “Pó barrela para lavar a roupa”; “Dog soap”, “Sabonete glicerina transparente”; “Pó d’arroz Flores Q’ridas”... A encomenda pede o restauro possível e a conservação destas belíssimas peças art déco, que eventualmente poderão vir a ser reimpressas nestes tempos em que gostamos de recuperar o imaginário de outras épocas. Um trabalho a exigir cuidado e precisão. Mas totalmente diferente daquele que tem obrigado a jovem estudante Leonor Trepa, de 26 anos, a atrasar a conclusão do seu mestrado de especialização em Pintura, desde há meses ocupada com uma pintura ortogonal, que inicialmente parecia apenas uma grande mancha de fumo, e só depois de limpa se percebeu representar uma ninfa, numa alegoria da Farmácia.
“O momento mais interessante foi quando descobrimos que, debaixo de uma camada de verniz, o artista lhe deu uma patine com a intenção de criar um tom mais amarelado e escuro”, diz Trepa, explicando que a descoberta só foi possível pela utilização de luz ultravioleta.
Só quando o proprietário (privado) desta tela vir o resultado do trabalho já feito irá decidir se quer que o CCR trate uma segunda parte desta decoração do tecto da sua casa, que se encontra no mesmo estado indecifrável da anterior. E talvez esse trabalho continue a ocupar Leonor Trepa, que escolheu a Escola das Artes da Católica-Porto quando descobriu que o curso de Conservação e Restauro associava esta valência prática com a História da Arte. “Pareceu-me mais equilibrada na relação da parte teórica com a prática, igualmente focada na investigação”, diz a jovem estudante portuense, que, no futuro, gostaria de montar o seu “próprio atelier de conservação e restauro”.
A professora Maria Aguiar, com formação entre Tomar e Inglaterra, coordenadora da licenciatura em Conservação e Restauro, e que veio “abrir a escola” da Católica do Porto, vê também no “bom equilíbrio entre a teoria e a prática” a justificação para a procura da instituição. “Aqui, os alunos trabalham com obras reais, com materiais orgânicos e inorgânicos, com pintura, escultura, cerâmica, vidro”, acrescenta a docente do curso que actualmente conta com perto de meia centena de estudantes.
Já mais difíceis são as saídas profissionais, mesmo se a escola “ajusta os currículos às necessidades do mercado”, mostrando uma grande atenção “ao que se está a passar nesta área”, nota Maria Aguiar.
Carla Felizardo acrescenta que a actividade do CCR está sempre “muito dependente das flutuações do mercado da arte, que mudou imenso nos últimos 15 anos”. “Estamos a fazer a nossa curva normal em termos de resposta, mas agora estamos a estabilizar, perfeitamente oleados, experientes; e temos equipas muito capazes até de dar resposta a coisas inesperadas e diferentes”. E aponta como exemplo a encomenda para o Museu do FC Porto: “Foi um trabalho incrível, num espaço muito curto. Tratámos 597 peças – taças, bandeiras, galhardetes, equipamentos, bolas, chuteiras, livros, jornais, fotografias, medalhas, e o equipamento do Pavão – em três meses. E rodeados por um sigilo e medidas de segurança que nunca tínhamos tido”.
Um trabalho que não teve a delicadeza de recuperar uma das primeiras bandeiras, em cetim já bastante esfarrapado, do quase centenário União Sport Club Paredes, que o clube quer emoldurar. Mas que será feito com o mesmo cuidado com que o CCR tratou o retábulo atribuído a Simão Rodrigues, um pintor maneirista do século XVI-XVII, para o Museu Diocesano de Santarém, e que Carla Felizardo diz ter sido a peça mais valiosa de quantas já passaram pelas mãos dos alunos, técnicos e professores do Centro.