"Já não se trata de matar o adversário, mas de procurar uma liberdade fora da família"
Sonhos cor de Rosa abre, a 5 de Abril, a Festa do Cinema Italiano. Como sempre, ver um filme de Marco Bellocchio é passar os olhos por um arquivo histórico da Itália recente.
Marco Bellocchio, nascido em 1939, foi um dos nomes mais destacados do “nuovo cinema italiano” dos anos 1960, nascido sob os auspícios das novas vagas que frutificaram pelo mundo inteiro. O outro nome, claro, era o de Bernardo Bertolucci, praticamente da mesma idade de Bellocchio, e a crítica italiana – talvez pelo ar dum tempo em que se devia ser ou uma coisa ou outra, ou Beatles ou Rolling Stones – acicatou, nessa década, uma rivalidade mutuamente exclusiva entre os dois. Mas esse também foi o tempo em que o cinema de ambos mais coisas teve em comum, porque depois Bertolucci partiu à conquista do mundo, dos tangos em Paris, e finalmente de Hollywood via Pequim, e Bellocchio foi ficando em Itália, a fazer filmes sobre a vida em Itália, a política em Itália, a História contemporânea de Itália. Há alguns desvios a esta regra no trajecto de Bellocchio, mas o compromisso essencial foi sempre este. Evidentemente, nunca se tornou uma estrela conhecida como Bertolucci, mas a sua obra adquiriu uma solidez que não se encontra na dispersão da obra do autor de O Último Imperador, e ver o seus filmes é passar os olhos por uma espécie de “arquivo histórico” (como ele, Bellocchio, diz da “comédia à italiana”) da Itália recente.
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Marco Bellocchio, nascido em 1939, foi um dos nomes mais destacados do “nuovo cinema italiano” dos anos 1960, nascido sob os auspícios das novas vagas que frutificaram pelo mundo inteiro. O outro nome, claro, era o de Bernardo Bertolucci, praticamente da mesma idade de Bellocchio, e a crítica italiana – talvez pelo ar dum tempo em que se devia ser ou uma coisa ou outra, ou Beatles ou Rolling Stones – acicatou, nessa década, uma rivalidade mutuamente exclusiva entre os dois. Mas esse também foi o tempo em que o cinema de ambos mais coisas teve em comum, porque depois Bertolucci partiu à conquista do mundo, dos tangos em Paris, e finalmente de Hollywood via Pequim, e Bellocchio foi ficando em Itália, a fazer filmes sobre a vida em Itália, a política em Itália, a História contemporânea de Itália. Há alguns desvios a esta regra no trajecto de Bellocchio, mas o compromisso essencial foi sempre este. Evidentemente, nunca se tornou uma estrela conhecida como Bertolucci, mas a sua obra adquiriu uma solidez que não se encontra na dispersão da obra do autor de O Último Imperador, e ver o seus filmes é passar os olhos por uma espécie de “arquivo histórico” (como ele, Bellocchio, diz da “comédia à italiana”) da Itália recente.
Mas quando fomos ter com ele a Roma a ideia não era alimentar a suposta “rivalidade” com Bertolucci, e nem esse nome foi alguma vez mencionado. Antes comentar o seu último filme, Sonhos Cor de Rosa (que vai abrir a Festa do Cinema Italiano, no dia 5 de Abril, 21h30, São Jorge, em Lisboa) e depois, para a semana, estrear em Portugal), e articulá-lo com algumas constantes do percurso e da obra do cineasta. É um filme sobre traumas, da orfandade dum protagonista obcecado pela descoberta das verdadeiras causas da morte da mãe, era ele um miúdo, à memória do desastre de Superga, quando toda a equipa do “gran Torino” morreu num avião, em 1949, vinda de um jogo em Lisboa.
Pais, mães e filhos, às vezes com uma componente psicanalítica (de certo modo presente em Sonhos Cor de Rosa), são elementos fundamentais duma obra que se iniciou, em 1965, com um filme dum matricídio, o magnífico I Pugni in Tasca (As Mãos nos Bolsos), ou mais recentemente, e num filme estreado em Portugal, em Vencer, centrado nas convulsões familiares do clã Mussolini. E, claro, a História de Itália, que a estrutura narrativa de Sonhos Cor de Rosa permite evocar em tempos diferentes, entre os anos 60 e uma época quase contemporânea. E aí destaca-se um aspecto que se tornou crucial nos últimos anos do cinema de Bellocchio, a utilização “arqueológica” de imagens e sons de arquivo (sobretudo da televisão, mas também do cinema e da rádio) de uma forma que ultrapassa em muito a restituição de um “sabor da época” para se tornar matéria directamente imbrincada na textura do filme.
O carácter melodramático de Sonhos Cor de Rosa, o facto de o filme ser adaptado de um best seller italiano, levou a que a crítica, disse-nos Bellocchio, tivesse pasmado com a ideia de se ter tornado “bonzinho”. Mas a violência não desapareceu do seu cinema, apenas se transformou, adquiriu formas diferentes – mudou, isso sim, foi a relação pessoal com o “carácter destrutivo da violência”. Político, sempre foi e continua a ser, até para lá dos filmes (militou em partidos maoistas nos anos 60 e 70, e foi candidato a deputado por um partido da “esquerda” dita “radical”). E acredita que o cinema italiano se condenou à irrelevância a partir do momento em que deixou de saber ser político: “Toda a Europa sabia quem eram Sordi ou Gassman, mas quem conhece os cómicos italianos contemporâneos”?
Sonhos Cor de Rosa adapta um romance de Massimo Gramellini, um escritor muito popular em Itália. O que é que viu nele?
Penso que não será muito conhecido fora de Itália, mas aqui é muito popular e este romance foi um enorme sucesso. Foi um projecto proposto, ou “encomendado” como se diz, por um produtor que tinha adquirido os direitos. Li-o e fiquei impressionado pela história que contava. Uma infância particularmente feliz de um miúdo, a quem misteriosa e subitamente morre a mãe. E toda a sua vida emocional fica marcada por esta perda. É uma perda catastrófica, que exige que ele convoque, para sobreviver, todos os mecanismos de auto-defesa emocional. Isto interessava-me muito. Primeiro, a rebelião aberta, depois a invenção de um fantasma, Belfagor, que o ajuda a sobreviver à dor. Este sofrimento deixa traços profundos. Reencontramo-lo em adulto, ainda em luta com este trauma. E depois o encontro com uma mulher, que de certa maneira substitui a mãe, mas também vem negar a atitude defensiva dele, de não se envolver em sentimentos, digamos, arriscados. Achei que havia nesta história coisas interessantes, também por relação com a minha imaginação, o meu cinema, o meu passado, a minha história pessoal.
Trouxe alterações à narrativa tal como o livro a contava?
Sim, mudei algumas coisas. O essencial é como vem no livro. Mas, por exemplo, a cena do encontro com o grande financeiro é invenção minha. E a aventura do protagonista em Sarajevo é muito diferente do que está no livro. Assim como o encontro com a mulher. Mas os factos principais são essencialmente os mesmos. A preocupação a escrever o argumento foi a de encontrar imagens, imagens capazes de quebrar o espaço e o tempo, que num filme são forçosamente diferentes do espaço e do tempo de um livro.
Era importante para si o facto de a acção se passar em épocas diferentes, dos anos 60 ao século XXI?
Não necessariamente, mas… (hesita)
…porque no filme o que vemos são, basicamente, momentos distintos da história recente de Itália…
É que esse é um problema. É sempre um problema quando temos que filmar três etapas diferentes da vida de uma personagem. Os três tempos fundamentais são a infância, a pré-adolescência, e a vida adulta. Foi um trabalho novo para mim. Em Vencer havia uma personagem que víamos em dois momentos, a amante de Mussolini e mãe do seu filho, mas era a mesma actriz, Giovanna Mezzogiorno, e Mussolini foi tratado através de imagens de arquivo e de um actor. É um desafio trabalhar sobre matéria histórica.
Mas a época sente-se de maneira muito forte, há muitos detalhes.
Sim, é a Itália dos anos 60. O objecto-televisão, por exemplo, tinha uma solenidade que já não tem. Era como se propusesse encontros, e muitos italianos respondiam a sério a esses encontros. Hoje é diferente, há milhares de canais, está tudo fragmentado. Mas então o telejornal, ou a noite de cinema, tinham um peso e uma solenidade enormes. Belfagor, por exemplo, era uma série francesa que teve um enorme sucesso em Itália. Desenvolvemos isso, no argumento, reforçando o peso deste fantasma na vida do pequeno protagonista.
Mas esse aspecto da televisão é muito importante. Já em Bom Dia, Noite tinha trabalhado assim, fazendo com que a época [o final dos anos 70, o rapto de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas] passasse através das imagens da televisão. Não como “decoração”, mas como uma parte da textura do filme. E aqui encontra-se isso outra vez, trabalha a televisão como se fizesse arqueologia…
Sim, arqueologia, boa palavra… Claro que há motivos para isso. Fazer reconstituições de época num filme italiano é difícil. A solução mais económica é recorrer ao repertório televisivo. Mas isto é um ponto de partida. Depois, a televisão deve integrar-se no espírito do filme, não só como informação ou contexto. Deve tornar-se “estilo” dentro do filme.
E outra função dessas imagens é a de fazerem a ponte entre a história individual do protagonista e uma história colectiva, de Itália e dos italianos…
Sim, sim…
…e há um reflexo muito evidente entre a tragédia da personagem e o trauma que foi o desastre de Superga [o acidente de avião que vitimou toda a equipa de futebol do Torino, em 1949]. É uma escala diferente, mas aí passamos do individual ao colectivo.
Superga foi um tragédia nacional. Eu tinha 8 ou 9 anos e lembro-me da comoção geral, tocou a toda gente, ricos ou pobres. É claro que na história do livro e do filme isso aconteceu antes do nascimento do protagonista. Mas numa família de tradição “granata” [“grená”, cor da camisola do Torino] isso é carregado como uma orfandade. Turinense, mas também nacional. E nesse sentido, sim, é um reflexo da orfandade do protagonista. Por acaso essa cena [a homenagem às vítimas de Superga] começou por ser feita com imagens de arquivo, mas como achei que não funcionava acabei por rodá-la como ficção.
Mas aonde queria chegar era à relação, constante no seu cinema, entre uma narrativa imediata, relacionada com as personagens, uma narrativa mais vasta, mais colectiva, histórica…
Sim… É uma respiração bastante natural. Não significa que não possa contar uma história privada sem a enquadrar na história de Itália. É o modo como se faz que confere um sentido. Mas agrada-me estabelecer relações entre a Itália e a história que quero contar. Não tem que ser muito preciso, pode ser uma coisa… magmática.
Na mistura emocional do protagonista o ressentimento para com a mãe também é importante. Como se a morte prematura dela fosse interiorizada como uma traição, e servisse de mola para uma revolta. Estas relações complexas de filhos e pais também habitam muitos dos seus filmes... A começar pela sua estreia, I Pugni in Tasca (1965).
É um tema clássico, creio, o da ilusão, ou desilusão, dos pais em relação aos filhos. As exigências, as expectativas… Em “I Pugni in Tasca” o filho odiava a mãe porque não conseguia compreender o grau de exigência dela. Depois o fantástico sobrepunha-se à acção e ele matava-a. Matava-a num gesto de rebelião. Em In Nome del Padre [1972] há uma personagem que tem algo de semelhante com essa, e mata a mãe, simbolicamente, disparando sobre a imagem dela num espelho.
É curioso, e não sei se estará de acordo com esta observação, mas se é comum que os cineastas, enquanto jovens, filmem de acordo com o ponto de vista dos filhos, e depois, à medida que vão envelhecendo, vão passando lentamente para o ponto de visto dos pais. No seu caso, dir-se-ia que continua mais próximo do ponto de vista dos filhos…
Não sei… Mas sim, parece justo. Eu julgo que aquilo que mudou mais em mim foi a relação com o carácter destrutivo da violência. Manteve-se uma dimensão de revolta contra o poder representado pelos pais, que em I Pugni in Tasca se resolvia pelo extermínio da família, mas a resposta mudou: já não se trata de matar o adversário, mas de procurar uma liberdade fora da família, abandoná-la. Há quem diga que me tornei “bonzinho”, mas que me importa isso… Nunca quis repetir o que já tinha feito. De resto, isso foi-me atirado à cara em Itália a propósito deste filme, porque Gramellini, sendo um autor muito popular, é mal visto pela intelligentsia. Muitas das críticas foram incapazes de ultrapassar isto, “o que faz Bellocchio metido com Gramellini?”, e não conseguiram ver o filme para além disso. E então disseram: “Bellocchio tornou-se bonzinho”… Eu tornei-me “bonzinho”, olha que essa… I Pugni in Tasca corresponde à minha juventude, a um ideal de anarquia destrutiva, e destrutiva até à morte. Era uma ideia política, não tinha nada de autobiográfico e tinha pouco de literal. Desde então claro que mudei, mudei muita coisa.
Refere-se muito a admiração que Pasolini manifestou pelos seus primeiros filmes, e chegou a colaborar com ele. Foi uma das suas influências? Aprendeu o quê com ele?
Dei-me muito com Pasolini até à morte dele em 1975, muito por via de uma amiga comum, [a actriz] Laura Betti. Mas só colaborámos uma vez, quando me chamou para dobrar a voz de um actor em Salò. Era um homem muito reservado, com uma vida secreta, como hoje todos sabemos, e onde era difícil entrar, talvez só Laura Betti, que era uma confidente. Mas claro, Pasolini e Alberto Moravia foram as grandes referências intelectuais, às vezes contraditórias e em conflito, da minha juventude. Da minha e de muitos outros. Fascinava-me o que eles escreviam sobre a História, o fascismo, a Itália contemporânea. Neste sentido “conheci” Pasolini bem, de facto, mas vivíamos em mundos diferentes. Eu vinha da pequena burguesia e na pequena burguesia permaneci, enquanto Pierpaolo estava muito ligado à mitologia do povo, do proletariado, que estaria a ser destruída pela sociedade de consumo, o que era um dos seus temas essenciais.
Mas, independentemente da carga política ou intelectual explicita de muitos dos seus filmes, é um realizador com gosto por uma relação com a narrativa clássica e pela dimensão popular do cinema. Foi importante para si o cinema popular italiano, os Risis, os Monicellis?
Quando comecei a filmar não conhecia profundamente esse cinema. Depois vi e conheci, até com admiração, mas a minha estrada foi outra. Os franceses, a nouvelle vague. Ou um autor que admirei muito, Marco Ferreri. De outro modo, também Antonioni. Mas sobretudo os franceses e, mais tarde, também os portugueses: Manoel de Oliveira, por exemplo. Dito isto, claro que a “comédia à italiana” é um arquivo histórico de Itália, preciosíssimo. Quase sempre com uma dimensão pessimista, muito cínica, que não partilho: aquela figura clássica do “herói italiano”, que se torna “herói” sem querer, por um golpe do destino, como os protagonistas de La Grande Guerra [Monicelli, 1959]… Mas era um cinema italiano com adversários bem definidos: o poder democrata-cristão, depois o poder socialista. O poder, em suma, ao qual se opunha com anarquia e ferocidade. E foi quando deixou de saber ser política que a comédia italiana se tornou medíocre, muito medíocre, inofensiva, feita de palavras e trocadilhos. Portanto, sim, essa época foi uma época dourada do cinema italiano. Hoje a comédia tornou-se uma obsessão, somos bombardeados, é “a comédia, a comédia”… Mas Sordi e Gassman, Risi [objecto de retrospectiva na Festa], Monicelli ou Comencini eram conhecidos na Europa toda, e hoje fora de Itália ninguém conhece um único cómico italiano. Porque nem vale a pena.