Um plano Moisés para gente como nós
Salvar todos aqueles que podem ser salvos. Cabe à Europa construir um plano para a integração de todos aqueles que hoje dormem nas ruas da Europa e serão os europeus de amanhã.
A União da Europa fez recentemente 60 anos. Ao fim de séculos de guerra, mortes, migrações forçadas, fundamentalismo religioso, fundamentalismo político, fundamentalismo social, 60 anos de relativa paz e prosperidade só foram possíveis porque, finalmente, nos focámos nas semelhanças e não nas diferenças. Celebrar 60 anos de paz é um feito. Talvez irrepetível nos próximos tempos se não mudarmos de rumo, mas, por ora, um feito.
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A União da Europa fez recentemente 60 anos. Ao fim de séculos de guerra, mortes, migrações forçadas, fundamentalismo religioso, fundamentalismo político, fundamentalismo social, 60 anos de relativa paz e prosperidade só foram possíveis porque, finalmente, nos focámos nas semelhanças e não nas diferenças. Celebrar 60 anos de paz é um feito. Talvez irrepetível nos próximos tempos se não mudarmos de rumo, mas, por ora, um feito.
Acabo de regressar de Bruxelas, essa cidade capital da tal Europa sexagenária. Passeei pelas ruas do centro da cidade, não muito longe do bairro europeu. Está ainda frio em Bruxelas, o inverno ainda não acabou. Está um vento frio e um sol de inverno que não aquece o suficiente. De repente encontro uma família deitada, junto à parede. A mãe segura entre os braços um bebé que não terá ainda um ano. Deitados sobre cartões com um cobertor a tapar o frio e as mãos a tentar parar o vento. A criança chora, de frio, de fome não consigo perceber. Chora numa língua estrangeira.
Um pouco mais à frente outra família e outra e mais outra nas mesmas condições. Muitas mulheres, muitas crianças, alguns idosos. Sem-abrigo estrangeiros que se juntam aos sem-abrigo locais. São dezenas, centenas (milhares?) de pessoas. Muitos pedem esmola, mas a maioria jaz, resignada, esperando que a Europa acorde do seu torpor. Ao longo de 500 metros conto mais e mais famílias. Vou percebendo quem são. Gente em fuga, gente em trânsito, gente como nós. São migrantes, refugiados, requerentes de asilo, não consigo distinguir.
De repente um deles repara em mim como eu antes já reparara neles. Aproxima-se, pede ajuda, primeiro em francês, depois em inglês e em seguida num olhar triste que não precisa de tradução. Pergunto de onde vem. De Alepo, na Síria, responde com segurança. Tem estado pela Europa desde há meses e acabou aqui, nesta rua do centro de Bruxelas perto do bairro europeu. Não pede dinheiro, mas comida, para ele, para a sua família. Sim, sei onde é Alepo, sei onde fica a Síria. Só não sei bem onde está a Europa para onde queres ir, meu irmão.
Do outro lado da rua uma família de sem abrigo recebe de um turista que passa uma garrafa de litro e meio de água. Um pai de uma família de sem abrigo brinca na rua com o seu filho de não mais de três anos (que se ri, feliz, na inocência pura de quem não sabe ser um sem abrigo). Comovo-me, (primeiro por dentro mas já não chega), por perceber que a vida quotidiana destas famílias é viver aqui, nas ruas do centro de Bruxelas não muito longe do bairro europeu. Famílias inteiras nas ruas da Europa.
Estas ruas de Bruxelas estão cheias de Europa, de europeus. Pessoas, marcas, um estilo de vida, toda uma história contada em imagens e palavras. A nossa casa (também) é aqui. Quando se anuncia para breve o "Brexit". Quando escutamos discursos racistas e xenófobos. Quando sentimos por dentro os efeitos do terrorismo radical. Refletimos, nestas alturas, se queremos continuar a ser europeus. Eu quero. Mas numa outra Europa.
Que é feito da Europa solidária? Sessenta anos depois já esquecemos tudo o que é importante? Quando os dirigentes da Europa, os funcionários europeus, os europeus funcionais (e todos os outros) se passeiam pelas ruas da Europa (podia ser em Roma, Atenas, Berlim, Frankfurt, Estocolmo ou Paris) não sentem um remorso interior por não estar a fazer o suficiente? Eu sinto. Talvez por ser da tal Europa do Sul onde, apesar de tudo, a solidariedade ainda não é palavra vã.
A Agenda Europeia para a Migração não é um plano para a integração. Problemas complexos não se resolvem com soluções simples. A integração de todas estas famílias, de todas estas pessoas, tem que obedecer a um plano. Um plano europeu de integração. Um plano Sousa Mendes para a integração. Um plano Moisés. Salvar todos aqueles que podem ser salvos. Cabe à Europa construir um plano para a integração de todos aqueles que hoje dormem nas ruas da Europa e serão os europeus de amanhã.
Pensem neles como futuros líderes, futuros médicos e cientistas, futuros artistas e futuros seres humanos. Gente como nós. Dinheiro não é problema numa Europa sexagenária. Um plano. Uma estratégia. Um futuro. Pensar nos próximos 60 anos em paz é ajudar a criança que chora nas ruas de Bruxelas a crescer como um qualquer outro europeu. Com oportunidades e com equidade. Uma estratégia europeia para a integração é muito mais do que a soma de 28 estratégias nacionais. Não basta distribuir milhões por agências internacionais. Não basta dar a esmola e continuar o passeio. Urge começar a pensar o futuro. Para todos. Com todos.