Os Sleaford Mods não são a voz do povo

Há quem diga bem alto que são a voz do povo e Jason Williamson ri-se da distinção. Não o podem ser. Mas são a banda que, como nenhuma outra, nos põe frente a frente com realidade. Chegou English Tapas. Os Sleaford Mods na terra do Brexit

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Roger Sargent

Era uma tarde sem nada que distinguisse das outras tardes e Andrew Fearn entrou num pub qualquer numa qualquer terriola inglesa. “English Tapas”, anunciava o letreiro. Tapas, os típicos petiscos espanhóis, mas em versão inglesa. Curioso. Mas quando Fearn e Jason Williamson, o duo que forma os Sleaford Mods, olharam para o que eram aquelas “English Tapas”, tremeram, como alguns lisboetas tremeram em tempos ao verem anunciados a turistas incautos especialidades tradicionais como pastéis de bacalhau com queijo da serra. Os Sleaford Mods tremeram primeiro, riram-se depois e, por fim, deprimiram. O que eram afinal as tapas inglesas? Meio ovo, uma chávena de batatas fritas, um pickle e uma miniatura de pork pie. “A Inglaterra tem esta mania de retirar coisas a outras culturas e reproduzi-las, mal, como se fossem suas”, lamenta ao Ípsilon Jason Williamson, falando desde Nottingham. “Sentimos que aquilo representava muito bem essa mania e, principalmente, o ambiente actual em Inglaterra: básico, reles e ignorante. Descobrimos o título perfeito”.

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Era uma tarde sem nada que distinguisse das outras tardes e Andrew Fearn entrou num pub qualquer numa qualquer terriola inglesa. “English Tapas”, anunciava o letreiro. Tapas, os típicos petiscos espanhóis, mas em versão inglesa. Curioso. Mas quando Fearn e Jason Williamson, o duo que forma os Sleaford Mods, olharam para o que eram aquelas “English Tapas”, tremeram, como alguns lisboetas tremeram em tempos ao verem anunciados a turistas incautos especialidades tradicionais como pastéis de bacalhau com queijo da serra. Os Sleaford Mods tremeram primeiro, riram-se depois e, por fim, deprimiram. O que eram afinal as tapas inglesas? Meio ovo, uma chávena de batatas fritas, um pickle e uma miniatura de pork pie. “A Inglaterra tem esta mania de retirar coisas a outras culturas e reproduzi-las, mal, como se fossem suas”, lamenta ao Ípsilon Jason Williamson, falando desde Nottingham. “Sentimos que aquilo representava muito bem essa mania e, principalmente, o ambiente actual em Inglaterra: básico, reles e ignorante. Descobrimos o título perfeito”.

A partir do momento em Fearn entrou no dito pub, os Sleaford Mods ganharam título para o seu novo álbum, o quarto desde que, com Austerity Dogs (2013), a banda definiu uma linguagem e começou a fazer-se notar para além dos pubs de Nottingham onde Jason Williamson antes distribuía gravações em edição de autor. No processo tornaram-se não só uma voz única no cenário musical inglês (raiva punk, atitude hip hop e neurose pós-punk com sotaque das Midlands), mas também em cronistas e delatores das fissuras sociais escancaradas pela crise, pelo desemprego e precariedade, pela alienação online e offline, pela “financeirização” da política.

English Tapas é o álbum dos Sleaford Mods na era do Brexit, ainda que o Brexit seja nele referência lateral. É o álbum dos Sleaford Mods que já não são banda de culto nas margens (já andaram em digressão com os Libertines, já tocaram em Glastonbury, assinaram pela Rough Trade e são ouvidos e seguidos por toda a imprensa, da especializada aos tablóides). É o álbum de uns Sleaford Mods que, apesar de tudo isso que mudou na vida destes quarentões tornados estrelas tardias, se mantêm resolutamente iguais ao que eram quando os conhecemos. “Um novo álbum é menos um novo álbum do que a continuação desta conversa que temos que ter”, escrevíamos há dois anos. Não nos enganámos.

O novo álbum mantém o olhar arguto, ora zangado, ora bem-humorado, e em linguagem directa, extraída da rua e emancipada em canto, sobre as pequenas misérias do dia-a-dia e suas personagens. Num momento, o alvo são os profissionais do ginásio, noutro, as estrelas rock decadentes que balbuciam inanidades sobre os seus tempos de glória. Noutros, Williamson questiona porque há sempre televisões nos pubs a alimentar a sensação constante de alienação, olha para o estado deprimente de tantos da sua geração, quarentões fechados em casa a beber copos e a snifar coca como na juventude (mas nada dá pica como antes), e atira-se à forma como a alta finança usa e abusa os seus trabalhadores como matéria descartável – “we’re going down like BHS, while the able bodied vultures monitor and pick at us”, canta em BHS [BHS era uma cadeia britânica de lojas de venda a retalho, cujo processo de falência em 2016 lançou 11 mil no desemprego e cortou a pensão mensal a 22 mil antigos empregados; quando se deu a falência o antigo proprietário viajava pelo Mediterrâneo no iate que acabara de adquirir].

Jason Williamson canta sem pregar o que quer que seja, sem se querer impor como impoluto agente para a acção e líder das massas. “Nunca me permitiria essa condescendência. Todos somos hipócritas de uma forma ou de outra e não devemos pensar em apresentar uma ideia concreta segundo a qual todos devem viver. Isso é estúpido e irrealista”, defende. Enquanto as produções de Fearn criam a atmosfera – são feitas de baixos bojudos e batidas secas, com o ocasional polimento de sintetizador e reverberações dubstep, e aceleram em ritmo punk-rock ou reduzem-se a velocidade narcótica –, Williamson põe-se em cena. O que ouvimos? “As diferentes vozes que ponho em diálogo na minha cabeça. Como resultado, a minha voz pode soar ansiosa, como se estivesse a ter um ataque de pânico, pode soar paranóica, pode soar zangada. Sou eu enquanto actor a representar-me a mim mesmo e a reagir à música”.

Peguemos em Dull, por exemplo. “We are the cheap flights looking at the Ferrari on show in Duty free / We don’t sell our souls anymore, give it away for 3 / Please please me, dead bingo, Brexit loves that fuckin ringo / Safe bet, all the oldies vote for death / Strap down, watch them and strike fast, why not? / They wanna kill people who ain't got a lot”. Agora, voltemos às tapas inglesas do início, aos Sleaford Mods na terra do Brexit. “Triste e deprimente”. É assim que Williamson define o resultado do referendo e as suas consequências. “Queria manter-me na União Europeia, apesar das suas falhas, apesar de me parecer ter sido tomada em parte por corruptos. Mais que uma preocupação com qualquer tipo de políticas, significava para mim sentir-me próximo de todas as pessoas [do continente], permitia uma compreensão mútua e partilhada”. Ainda assim, compreende. Assusta-o que compreenda, mas compreende. “A desilusão com a política actual é tão grande que as pessoas estão dispostas, até certo ponto, a negligenciar a xenofobia que está por trás da alternativa que lhes é proposta. É a história a repetir-se, como na Alemanha nos anos 1930, após o crash de Wall Street, que permitiu aos nacional-socialistas ganharem músculo. Em vários aspectos, o ambiente geral é semelhante. Mas ainda me custa aceitar que as pessoas estejam a cair neste engodo”.

"A maior banda rock'n'roll do mundo"

Depois de três anos e outros tantos álbuns, depois de digressões cada vez maiores, depois de ver nascer o segundo filho, Williamson, a caminho dos cinquenta, homem de família que deixou os anos de excessos para trás, não conseguia pôr no papel, ou melhor, no bloco de notas do telemóvel, coisa que interessasse. Estávamos algures em 2016 e English Tapas parecia ainda distante. “Basicamente, estava exausto. Andámos a carregar a banda no circuito de concertos no Reino Unido e no resto da Europa durante uns anos e isso deu cabo de mim”, conta o vocalista enquanto o filho bebé se inquieta no seu colo. Quando se inquieta mais e as interjeições infantis passam a choro, pede as desculpas que não precisava de pedir e ouvimo-lo passar o miúdo à mãe. Continua. “Foi mesmo necessário parar um bocado. Além disso, também tinha consciência que não era boa ideia estar constantemente a atirar música pela goela das pessoas abaixo. Não queria tornar-me aborrecido” – no processo, descansado o corpo e cabeça novamente alerta, as ideias e as palavras começaram novamente a jorrar.

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Esta é a banda a quem Iggy Pop dedicou os maiores elogios: “absoluta e definitivamente a maior banda rock’n’roll do mundo” Roger Sargent

Esta é a banda que muitos dizem a mais importante em Inglaterra neste momento, é aquela a quem Iggy Pop dedicou os maiores elogios – “sem dúvida, absoluta e definitivamente a maior banda rock’n’roll do mundo” –, é a que têm erguido a “voz do povo”. Williamson, homem inteligente, sabe que está perante um presente envenenado e ri quando confrontado com a distinção. “Não, não e não. Acho que toco em alguns temas que preocupam algumas pessoas e que essas pessoas se estão a habituar a ouvir-nos. Mas as bandas do povo hoje em dia são as bandas pop de idiotas a exibir os seus abdominais. É essa porra de bandas que as pessoas querem. É simpático que digam isso de nós e parece interessante no papel, mas quando nos confrontamos com a realidade, estamos muito longe de sermos os heróis do povo”. Ainda assim…

Eles estão na fila da frente, colados às grades da grande e centenária sala de espectáculos. Quase julgamos ver-lhes as veias no pescoço inchadas por cantarem, palavra por palavra, com o mesmo volume e intensidade do homem em palco, as letras das canções. Eles estão olhos nos olhos com a banda, naquele palco que, na verdade, não existe: os Sleaford Mods enfiados num fundo de pub, público de pint na mão, e quase julgamos ver a alguns as veias no pescoço inchadas por cantarem, palavra por palavra, com o mesmo volume e intensidade do homem em palco, as letras das canções – noutros, vislumbra-se aquela alegria etilizada de uma boa noite de copos com malta conhecida. Os Sleaford Mods vieram agitar um meio musical anémico, dizem uns. Falam para nós, falam por nós, e ninguém o fazia até eles chegarem, dizem outros. São miúdos de 18 anos, são veteranos da mesma idade que Williamson e Fearn.

Vemos tudo aquilo em Bunch of Kunst, o documentário realizado pela alemã Christine Franz que veremos no próximo IndieLisboa e que acompanha a banda até ao lançamento de Key Markets, em 2015. Vemos as pessoas na fila da frente da grande sala de espectáculos e os que vêem a banda no pub. Não é um antes e um depois. São os Sleaford Mods, que regressarão a Portugal, dia 9 de Junho, para tocar no Nos Primavera Sound, a vaguear entre esses dois mundos, imutáveis independentemente do cenário.

A banda cuja apresentação e som minimalista é diametralmente oposta ao alcance e poder da sua música, não alterou o processo criativo, não acrescentou instrumentos, não se afastou daquilo que lhe conhecemos. “Temos que saber dizer não. Não vou cobrir isto tudo com brilhantes, não vou vestir um fato de duas mil libras, vamos fazer como fazemos sempre”. Tal não significa fazer sempre igual. “A passagem do tempo e a forma como ele nos vai transformando enquanto seres humanos será a chave para que, pouco a pouco, também o som se vá alterando”.

Quando falámos com Williamson ainda não víramos Bunch Of Kunst. Pedimos-lhe que nos descrevesse o que iríamos ali encontrar. “É um filme notável, no sentido em que não é notável de todo. Na verdade, nada acontece. Lá se vai o mito do ‘turn on, tune in, drop out’ e essas merdas todas de estrela rock. O que o filme faz é mostrar a realidade de tudo isto. Imagino que seja bom”. Assim sendo, é um filme que faz justiça aos Sleaford Mods. Eles mostram a realidade de tudo isto. São muito, muito bons.

Corrigido a 17 de Agosto: BHS é uma antiga cadeia britânica de venda a retalho, falida em 2016.