Os cinco e o eixo do bem
Em 1941, cinco dos grandes da Hollywood clássica - Capra, Ford, Huston, Wyler e Stevens - abandonaram as suas mordomias para contribuirem para o esforço de guerra. É a sua história, e a história do cinema de propaganda americano na Segunda Guerra, que a série documental Five Came Back conta.
No princípio, era um livro: uma história do investimento de Hollywood na propaganda pró-Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, concentrando-se no trabalho de cinco realizadores de primeira linha – Frank Capra (1897-1991), John Ford (1894-1973), John Huston (1906-1987), George Stevens (1904-1975), William Wyler (1902-1981). Todos eles nomes incontornáveis da “era clássica” de Hollywood, todos eles cineastas mais do que reconhecidos já antes da entrada dos EUA na guerra. E quando o esforço de guerra chamou, em 1941, após o ataque-surpresa a Pearl Harbor, estes cinco não hesitaram em abandonar Hollywood e dedicar a sua reputação e o seu talento a ajudar à vitória sobre as forças do Eixo.
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No princípio, era um livro: uma história do investimento de Hollywood na propaganda pró-Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, concentrando-se no trabalho de cinco realizadores de primeira linha – Frank Capra (1897-1991), John Ford (1894-1973), John Huston (1906-1987), George Stevens (1904-1975), William Wyler (1902-1981). Todos eles nomes incontornáveis da “era clássica” de Hollywood, todos eles cineastas mais do que reconhecidos já antes da entrada dos EUA na guerra. E quando o esforço de guerra chamou, em 1941, após o ataque-surpresa a Pearl Harbor, estes cinco não hesitaram em abandonar Hollywood e dedicar a sua reputação e o seu talento a ajudar à vitória sobre as forças do Eixo.
Five Came Back, o livro que o crítico e jornalista Mark Harris publicou em 2014, é agora uma série documental em três episódios, exibida a partir de 31 de Março no Netflix, acompanhada por nove dos filmes que estes realizadores dirigiram ou supervisionaram para o ministério da Guerra americano. Produzida por Steven Spielberg, realizada por Laurent Bouzereau (grande especialista dos making ofs e outros bónus DVD), adaptada pelo próprio Harris e narrada por Meryl Streep, Five Came Back-série é um compacto all-stars eficaz do livro, com duas mais-valias significativas. Primeira: a possibilidade de “ilustrar” a sua narrativa com excertos alargados dos filmes. Segunda, a presença no écrã de cinco cineastas contemporâneos, que “dissertam” sobre e servem de “guia” para cada um dos cinco realizadores abordados – Francis Ford Coppola sobre Huston, Paul Greengrass sobre Ford, Lawrence Kasdan sobre Stevens, Steven Spielberg sobre Wyler e Guillermo del Toro sobre Capra.
Não deixa de haver alguma ironia em ver nomes importantes da “Nova Hollywood” a prestar a sua homenagem ao sistema que vieram substituir. Mas foi esse sistema que os formou e que os inspirou, que os ensinou a ver e amar cinema, na televisão, nas escolas de cinema ou nas cinematecas. E essa “passagem de testemunho” entre gerações reflecte o modo como Hollywood moldou até hoje a imagem pública da Segunda Guerra Mundial e da instituição militar (e repare-se como Coppola fez um dos seus filmes mais subvalorizados sobre a tropa, Jardins de Pedra, ou como Spielberg assinou A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan e produziu as séries Irmãos de Armas e The Pacific). Five Came Back, aliás, é acima de tudo sobre isso: a Hollywood clássica como máquina de construção de imagens e conceptualização de ideias, como uma maneira de ver o mundo e de projectar esse ponto de vista à volta do globo.
A série, aliás, está no seu melhor quando alude à distância entre imagem e realidade (o que a torna particularmente relevante para os nossos dias), a propósito de A Família Miniver (1942), o filme sobre o quotidiano de uma família inglesa durante o Blitz que Wyler completou pouco antes de iniciar o serviço militar e que se tornou num fenómeno de popularidade. Enviado para Inglaterra (onde filmaria os aviadores americanos aí estacionados no lendário The Memphis Belle), Wyler percebeu por experiência própria como o exemplo de resistência e dignidade de A Família Miniver soava a falso, perpetuava uma imagem idealizada de uma Inglaterra que pouco ou nada tinha a ver com a realidade. Mas essa Inglaterra mítica, paradoxalmente, tornou-se num farol simbólico à volta do qual era possível levantar o moral – um pouco como a Marselhesa em Casablanca para o público que o via na altura – e o filme ficou indelevelmente marcado como um dos melhores retratos da vida durante a guerra, como um exemplo da força de Hollywood para projectar à volta do mundo os ideais democráticos.
Mas essa força era significativamente menor do que parecia. Hollywood e o Pentágono nunca tiveram verdadeiramente uma relação produtiva durante a guerra, como exemplificam as dificuldades de Capra, que conseguiu desde o início da intervenção americana montar toda uma estrutura de produção. O autor de Uma Noite Aconteceu tinha compreendido desde o início o papel central do cinema, grande entretenimento popular, como potencial “educador” pró-democrático. Mas se a sua produção de filmes de recruta e treino se tornou num dos triunfos do programa cinematográfico do governo, Why We Fight, a série de sete filmes que pretendia explicar o porquê de entrar na guerra em defesa da democracia, rapidamente se atolou em questões de tom e conteúdo e levou tanto tempo a produzir que os filmes se tornaram numa mera nota de rodapé. Vários dos filmes produzidos pelas equipas de Hollywood enfrentaram o desagrado do Pentágono, que não queria correr o risco de minar o moral das tropas, e só graças à intervenção das mais altas instâncias governamentais foram mostrados ao público. (E mesmo assim, Let There Be Light, que Huston realizou já perto do fim da guerra para falar do tratamento dos soldados que regressavam com problemas psiquiátricos, ficaria fechado a sete chaves durante 40 anos.).
Quando Capra viu pela primeira vez um dos filmes de Leni Riefenstahl, cineasta “oficial” do regime nazi, a sua reacção foi imediata: se os aliados não conseguissem fazer filmes do mesmo calibre artístico, a guerra estaria perdida. Mas as instruções das chefias militares e a sua supervisão dos cineastas convocados raramente convergiam, e as múltiplas equipas de filmagem pareciam estar cada uma para seu lado. Capra tinha linha directa para os responsáveis do exército e Ford era tu-cá-tu-lá com as altas instâncias da marinha e dos serviços secretos, mas Huston e Wyler dificilmente conseguiam penetrar nas cadeias hierárquicas sem a ajuda de amigos instalados na burocracia militar. Vitória no Deserto (1943), aclamadíssimo documentário de David MacDonald produzido pelo serviço cinematográfico do exército britânico sobre a vitória dos Aliados em África, tornou-se no exemplo daquilo que os americanos, com muito mais meios e reputação, raramente conseguiram fazer: George Stevens, enviado para filmar as operações em África, chegou a Tunis um dia depois do fim dos combates.
Dos cinco realizadores sobre os quais Mark Harris se debruça, Stevens – que viria a realizar O Gigante ou Shane – parece ter sido aquele que mais naturalmente assumiu um papel de mero “operador de câmara”, registando momentos históricos para a posteridade. São da sua equipa as imagens de libertação dos campos de concentração e o registo em filme das muitas atrocidades nazis que serviram de prova nos julgamentos de Nuremberga. Stevens foi, aliás, o único que não assinou ou supervisionou nenhum documentário durante a duração do conflito. E, do mesmo modo que Leni Riefenstahl introduziu muitas das técnicas de filmagem documental e desportiva que são hoje comuns, também Ford, Huston ou Stevens, com as suas câmaras ligeiras à mão que captavam ataques aéreos ou combates em praias, inovaram no modo de reportar combates e na veracidade que introduziram na máquina de sonhos de Hollywood. A Segunda Guerra Mundial, e o cinema de guerra como um todo, não voltaram a ser olhados da mesma maneira. Hollywood pode continuar a ter perseguido as bilheteiras e os lucros, mas a descontracção dos anos pré-1941 desaparecera de vez, e o conflito viria a pairar sobre tudo o que o cinema americano fez nos anos seguintes.
Os cinco cineastas no centro da série também não voltaram incólumes para casa. Harris refere como aqueles que viveram o desembarque na Normandia raramente falavam desse dia-chave no desenrolar do conflito, e os filmes que fizeram ao regressar reflectiam as experências que haviam vivido. Wyler, que regressou surdo das suas campanhas e recuperaria aos poucos parcialmente a audição, fez Os Melhores Anos das Nossas Vidas (1946), sobre o regresso à vida civil de três veteranos da guerra. Ford rodou a história verídica de um comandante da Guarda Costeira em Homens para Queimar (1945). E Capra enterrou-se nas bilheteiras com o filme que hoje é reconhecido como a sua obra-prima mas na altura foi mal recebido, Do Céu Caiu uma Estrela (1946). O título original do filme era programático: It’s a Wonderful Life. O trabalho que fizeram durante a guerra não terá passado de um interlúdio nas suas carreiras, mas Five Came Back mostra como esse parêntesis acabou por se reflectir e se refractar na própria história do cinema americano.
Para lá dos três episódios de Five Came Back, o Netflix exibe igualmente nove dos filmes de propaganda dirigidos por estes realizadores: Prelude to War (1942) e The Battle of Russia (1943) de Frank Capra e Anatole Litvak, Tunisian Victory (1944) de Frank Capra e Hugh Stewart, The Battle of Midway (1942) e How to Operate Behind Enemy Lines (1943) de John Ford, Report from the Aleutians (1943), San Pietro (1945) e Let There Be Light (1946) de John Huston e Thunderbolt (1947) de William Wyler.