Algumas canções a mais na vida de Stephin Merritt
À medida que 50 Song Memoir avança, soa mais cansado, com menos recursos, nalguns momentos a esbarrar na repetição.
Talvez de forma inadvertida, ao lançar 69 Love Songs, em 1999, Stephin Merritt colocou uma ratoeira à frente dos seus passos. A partir desse momento, todo e qualquer gesto criativo que fizesse teria de haver-se com um projecto desmesurado e algo narcisista, de quem achava poder oferecer ao mundo quase sete dezenas de canções de uma assentada e presumir que: a) não secava por completo a sua fertilidade artística; b) seria tragável escutar tanta canção que, com as devidas nuances, mais adultas ou infantis, mais parvas ou depressivas, partilhava um mesmo mote temático; c) o objecto auto-imposto de compor um determinado número de canções não acabaria por distorcer o julgamento em causa própria, levando à acumulação e à edição de canções que, em condições normais, provavelmente não passariam um apertado crivo de qualidade.
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Talvez de forma inadvertida, ao lançar 69 Love Songs, em 1999, Stephin Merritt colocou uma ratoeira à frente dos seus passos. A partir desse momento, todo e qualquer gesto criativo que fizesse teria de haver-se com um projecto desmesurado e algo narcisista, de quem achava poder oferecer ao mundo quase sete dezenas de canções de uma assentada e presumir que: a) não secava por completo a sua fertilidade artística; b) seria tragável escutar tanta canção que, com as devidas nuances, mais adultas ou infantis, mais parvas ou depressivas, partilhava um mesmo mote temático; c) o objecto auto-imposto de compor um determinado número de canções não acabaria por distorcer o julgamento em causa própria, levando à acumulação e à edição de canções que, em condições normais, provavelmente não passariam um apertado crivo de qualidade.
De facto, um dos encantos de 69 Love Songs estava nessa diversidade de propostas, algumas perfeitas e redondas, outras mal acabadas e claramente prematuras, mas que ajudavam Merritt a não desesperar com a possibilidade de estar a correr sem sair do lugar, repetindo fórmulas e formatos. Outro dos seus charmes era a leveza com que o músico dos Magnetic Fields abordava variadíssimas linguagens da música popular, sem parecer dominá-las em absoluto, mas com o conhecimento suficiente para com elas brincar sem as espatifar. 69 Love Songs tinha esse lado quase infantil de tentar fazer tudo ao mesmo tempo só pelo gozo, de atirar ao ar uma canção e agarrar noutra só porque sim.
i (2004), Distortion (2008), Realism (2010) e sobretudo Love at the Bottom of the Sea (2012) surgiram sempre como álbuns que pareciam curtos – quer de ideias quer de extensão, como se Merritt tivesse deixado de saber lidar com um disco de duração convencional, obrigado a uma coerência que se tornava um turn-off. Para o público, também, desaparecia o lado lúdico de estar rodeado de 69 canções e ouvir de forma quase aleatória, tirando gozo dos contrastes e das contradições que a dimensão exigia – e que resultariam absurdas num disco de 13 temas.
Talvez por isso, Stephin Merritt começou a pensar como regressar a uma empresa igualmente colossal. A resposta é este 50 Song Memoir, autobiografia em 50 canções, uma por cada ano da sua vida, que troca a natureza ficcional de 69 Love Songs pela perspectiva tão pessoal quanto possível desta colecção. Embora a diversidade de registos volte a estar presente, de rock’n’roll e folk inglesa a canções com um fundo quase de música sacra, gótico, disco ou arábico, tudo processado pela marca d’água de Merritt, há uma outra ratoeira que parece colocar-se diante do músico norte-americano: à medida que o álbum avança, intencionalmente ou não, soa mais cansado, com menos recursos, nalguns momentos a esbarrar na repetição.
Não custa encantarmo-nos com o seu tom de Ian Curtis a recordar Dionysus, o gato dos primeiros anos da sua infância, pardieiro de crises diárias (A cat called Dionysus), com a deliciosa Come back as a cockroach, de apelo à prática do bem, ou o tom sonhador na linha de Lisa Germano de I think I’ll make another world. Nem é difícil aderir ao tom electro-operático que (em doses maiores ou menores) toma conta de Danceteria ou Hustle ’76 (uma apropriada encomenda dos produtos de venda televisiva aos dez anos), ao aviso contra os malefícios da música em Rock’n’roll will ruin your life, canção à medida dos Eels, ou à quase infantil manifestação de desejo de se tornar um cineasta underground em Why I am not a teenager. Nem sequer é doloroso embarcar numa daquelas paixões perfeitas porque nunca concretizadas de At the pyramid, canção de contornos indianos, no tom negro à moda de Beck em Dreaming in Tetris ou na descrição do estado dormente da medicação que lhe inibia as emoções em Weird Diseases.
Só que à medida que o cinismo vai conquistando espaço à inocência e a idade adulta se instala em toda a sua seriedade, há uma perda de vitalidade que pode ser conceptualmente acertada mas que é musicalmente frustrante. A ponte de se perder alguma tolerância para com as histórias. O que é de lamentar – porque a escrita de Merritt mantém-se estimulante e a confissão de fragilidade e um espírito turbulento num homem feito é tocante. Só que o cobertor musical encolheu e deixou-lhe os pés de fora. No geral, sobram histórias para a música que Merritt tinha em si.