Está a começar a revolução do pão em Portugal
Há quem semeie trigos antigos como o barbela, há quem aposte na recuperação de moinhos tradicionais, há cada vez mais gente a aprender o ofício de padeiro e interessada nas formas artesanais de fazer pão, com leveduras naturais e fermentações longas. Alguma coisa está a mudar no pão em Portugal.
João Vieira chega a casa de Adolfo Henriques, na Maçussa, perto do Cartaxo, trazendo na mão duas espigas de trigo. “Repare”, diz, exibindo uma delas, “este é um trigo moderno, modificado, veja a espiga, a diferença que é o resultado da manipulação”. É uma espiga compacta, de bagos cerrados. De seguida, João Vieira exibe outra de bagos mais abertos. “Este é um trigo antigo, o trigo barbela, que tem menos bagos numa mesma espiga, mas traz mais nutrientes e é muito rico em óleos naturais.”
“Há 15 anos que trabalho nisto de forma solitária”, desabafa o agricultor do Cadaval. Mas agora começa a ver sinais daquilo que espera ser uma revolução na forma de os portugueses olharem para os cereais que usam para fazer pão. Estamos na Maçussa precisamente porque Adolfo Henriques, produtor de vinho e queijo de cabra, entre outras coisas, ouviu falar do trigo barbela e decidiu começar a fazer pão com ele.
Mas não foi só Adolfo. O trigo barbela de João Vieira já está à venda naquela que é, neste momento, a padaria mais falada de Lisboa: a Gleba, onde Diogo Amorim, de 21 anos, está a tentar recuperar cereais antigos cuja moagem é feita na própria padaria. Para todos eles, isto é uma aprendizagem.
“Nunca tinha feito pão com trigo barbela e a primeira vez que comecei a amassar a farinha começou a largar óleo, a agarrar-se às mãos e a ficar escura”, conta Adolfo. “Lembro-me de, quando era miúdo, haver os pães escuros que eram feitos com estas farinhas. E quando o mostrei a uma senhora minha conhecida ela chorou e disse-me: ‘Fui criada com este pão há 60 anos’.”
Mas tanto o pão como o trigo com que era feito tinham desaparecido, abalroados pelos trigos modernos, muito mais produtivos. “Ainda estamos a perceber a produtividade que este trigo dá aqui nos meus terrenos, onde semeei três hectares. Não temos histórico. Mas aqui o amigo João sabe que são baixas produções”, explica Adolfo.
João conhece bem o seu trigo. Era uma das mais de 30 variedades que o pai e o avô semeavam nesta região onde dava belas searas, altas, e que continua a ser semeado, em parcelas mais pequenas, por alguns agricultores em Trás-os-Montes. “É um trigo excepcional para o nosso país, onde não abundam terras férteis para o trigo nem a chuva. Tem a vantagem de resistir bem às alterações climáticas e à seca e produz bem seja no Norte, no Sul ou no Centro. E tem um sistema radicular em profundidade, o que significa que vai buscar os nutrientes à terra em profundidade, enquanto os trigos modificados têm um sistema radicular de superfície.”
A certa altura da sua vida, João percebeu que o trigo que conhecia da sua infância, trazido para Portugal pelos árabes no século VIII (e a que alguns também chamam “o morto-vivo” por se pensar que estava extinto), estava condenado a desaparecer. A partir de 1994, conta, foi definido um preço mundial para os cereais, acertado por baixo, e o valor do trigo sofreu uma queda abrupta.
“É uma loucura um preço mundial. Claro que não podemos produzir em Portugal pelo mesmo preço que se pratica em França, na Ucrânia ou na Argentina.” Mas, garante, podemos ainda recuperar variedades como o barbela e aproveitar terrenos pouco valorizados para o semear. “Sou do norte da serra do Montejunto, onde temos terrenos diferentes dos da Maçussa, são arenosos e estão hoje plantados com eucaliptos, mas são terrenos onde este trigo se adapta muito bem.”
Olha, encantado para a espiga de barbela. “Conservei este trigo e dediquei 15 anos a multiplicar esta semente. Foi uma tomada de consciência.” Faz um sorriso irónico. “A indústria não quer saber deste trigo, diz que dá uma farinha fraca. Uma farinha é fraca porque não tem glúten [o trigo barbela tem glúten mas segundo João Vieira tem menor quantidade do que os trigos modernos]. É altamente nutritiva mas não dá o rendimento que eles querem.”
Um moleiro que resiste
Deixemos, para já a Maçussa, onde Adolfo nos dá a provar o pão que resulta das experiências que anda a fazer há seis meses, e passemos para outro cenário: a escola da Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal. Se está a acontecer uma revolução no pão em Portugal, ela passa também, sem dúvida, por este homem de barbas e cabelos longos, apanhados num rabo-de-cavalo, que dá aulas de panificação a um grupo de actuais e futuros padeiros: Mário Rolando.
Hoje, Mário Rolando trouxe um convidado, o panificador e moleiro da região de Setúbal Luís Rocha, que veio falar de moagem tradicional. Encontramo-nos algum tempo antes num café para ouvir a história de como moinhos e moleiros foram morrendo lentamente. “O meu pai viveu sempre na pobreza da agricultura, sempre debaixo de muito trabalho. Foi agricultor, canteiro, moleiro e mais tarde padeiro.” No início, era sobretudo canteiro, nos anos 1950, quando cidades como Lisboa e Setúbal estavam a crescer e precisavam de pedra. E na pedreira faziam-se também as mós para os moinhos.
O avô de Luís morreu jovem e o pai, que “tinha 14 anitos mas era o único homem da família”, começou a cultivar as terras e a moer o trigo no moinho, onde recebia cereais de outras pessoas, que pagavam ao moleiro em género. Um dia construíram uma escola junto ao moinho de vento que o pai comprara e este deixou de ter vento – foi preciso pôr-lhe um motor.
Mas, ainda antes de lhes tirarem o vento, veio a década de 80, fatal para o negócio. “Começa a escassear o cereal, depois do 25 de Abril as pessoas entenderam que não era preciso cultivá-lo e houve só meia dúzia de resistentes, como o meu pai. Durante os governos de Cavaco Silva, mandaram encerrar os celeiros, os resistentes deixam de ter onde vender o cereal e começa a haver muito trigo importado.”
Os pequenos agricultores, que já não podiam ir ao vizinho que tinha um moinho e pagar-lhe o trabalho em espécie, ficaram dependentes dos grandes moageiros. “Tinham uma trabalheira dos diabos até conseguirem uma seara mais ou menos e tinham de deixar tudo para os animais porque queriam vender a 20 cêntimos o quilo e o moageiro só oferecia dez. E assim foi acabando a agricultura manual.”
Hoje, afirma Luís Rocha, que mantém o seu moinho “por gosto”, “o panorama dos moinhos de vento está obsoleto, a moagem só é feita em grandes quantidades”. “Há um resistente ou outro, como é o meu caso, quando tenho vento de norte ou de oeste, vou lá e faço a farinha.” A boa notícia é que entre os tais resistentes começam também a aparecer jovens como Fátima Nunes, que recuperou o Moinho do Boneco, na Moita dos Ferreiros, próximo da Lourinhã.
Quem nos fala dela é João Vieira, que tínhamos deixado há pouco na Maçussa. Voltemos lá por um minuto para o ouvir. “É uma jovem moleira, a Fátima. Um dia fui lá e disse-lhe: ‘Usa este trigo, para não o perdermos, e faz com que outros o semeiem também.’ E ela disse-me: ‘Afinal, tínhamos ouro e deitámo-lo fora.’ Ela pica a mó e sabe toda a história de como a moagem chegou até nós através dos persas e de como os portugueses usaram os seus conhecimentos de navegação na construção das velas dos moinhos.”
De volta à conversa com Luís Rocha, que está a explicar o que faz a diferença entre um moinho de aço e as mós de pedra. “A qualidade não tem nada a ver. Nos moinhos de aço o cereal aquece muito e na mó a farinha sai a uma temperatura quase natural, uns 12, 13 graus, enquanto na moagem industrial pode atingir os 30 graus, o que faz com que perca logo ali o sabor.”
No seu moinho faz uma farinha 110, “mais grossa, mais amarelinha”, que preserva mais o cereal. Mas, lamenta, “as pessoas querem a farinha cor de neve, não querem as vitaminas nem o sabor nem as fibras”. E conclui: “Quando tenho farinha de moinho e faço pão, aquele cheirinho do pão a cozer é imbatível.”
Pequenos mas com qualidade
Na aula de Mário Rolando, Luís Rocha vai falar do funcionamento dos moinhos, das diferentes mós, da forma certa de as picar. E a ouvi-lo atentamente estão vários alunos, entre os quais, José Miguel Leitão, padeiro de Cabeço de Montachique, onde a família tem uma padaria desde 1912. “Sou a quarta geração”, diz, orgulhoso.
Sabe fazer pão, claro, mas está neste curso porque se apercebeu de que alguma coisa não estava bem na forma como nas últimas décadas se anda a fazer pão em Portugal.
“Nos últimos 60 anos, com o aparecimento da levedura industrial, houve uma alteração grande no modo de fabrico do pão nas padarias tradicionais”, explica. “O padeiro ganhou qualidade de vida. Antes, o processo levava pelo menos 12 horas desde que se começava a amassar, a tender, etc. Hoje é tudo mais rápido.” Mas isso teve custos.
O problema, acredita, é que “começou a haver uma promiscuidade entre a indústria de panificação e os padeiros mais pequenos”. Perante a ofensiva da indústria, com preços muito baixos, os padeiros tradicionais só tinham duas alternativas para sobreviver: baixar a qualidade da matéria-prima ou aumentar a produção. “Assistimos aos artesãos a entrar no mercado da grande indústria e vice-versa”, ou seja, nas grandes superfícies começou a ver-se cada vez mais pães “artesanais”.
Em 2007, o mercado da padaria entrou em crise. “A Associação dos Padeiros disse que tínhamos de aumentar os preços 20 a 30% e as grandes superfícies tinham um anúncio a dizer: ‘Nós não vamos aumentar o preço do pão’.” José Miguel começou a ver que o caminho tinha de ser outro. Nunca uma pequena padaria como a sua poderia concorrer com a indústria que “esmaga completamente os preços”. E percebeu uma coisa: “Nós, os pequenos, temos de entrar pelos nichos de mercado e oferecer muito melhor qualidade. Para nós, é muito mais fácil do que para a indústria montar um processo de produção de 24 horas para o pão.”
Decidiu, por isso, vir aprender com Mário Rolando a fazer um bom pão artesanal e já identificou um fornecedor para a farinha de moleiro, que “dá muito mais sabor e um aroma completamente diferente”. “Percebi que estava a perder algum mercado por não ter um pão mais tradicional.” Confessa, contudo, o receio de que muitos dos clientes ainda não distingam entre um pão industrial e um artesanal, não valorizem as fermentações longas ou a diferença de sabor e se deixem guiar apenas pelo preço. “Na nossa padaria, andamos a fazer experiências e vamos lançar em breve este tipo de pão.” A forma como é feito, as leveduras selvagens, a fermentação, dá-lhe uma leve acidez característica. “Essa acidez retém a água e não deixa que os bolores se desenvolvam, por isso é, naturalmente, um pão que dura uma semana sem problemas.”
Inevitavelmente, o preço será um pouco mais elevado, “um acréscimo de 20 a 30%”, mas garante que as pessoas que já provaram o pão gostaram muito e começaram a perguntar quando vão poder comprá-lo. “Acho que este é o caminho certo para os padeiros nacionais – mesmo pelo bom nome da panificação nacional.”
É também esse o objectivo de Mário Rolando, que viu o sector da panificação ir por um caminho com o qual não concorda e que quer dar aos seus alunos os instrumentos necessários para uma via alternativa. “Muitos deixaram-se ir na onda das multinacionais, mão-de-obra cada vez mais barata, produtos já preparados a que é só juntar água, facilitadores do trabalho, que deixa de ser um trabalho qualificado. Arranja-se três pessoas a quem se paga o ordenado mínimo e põe-se-lhes nas mãos um mix de pão alemão, um de broa de Avintes e outro de broa de milho e, se souberem ler, lêem a receita que está no saco e qualquer um deles faz aquilo.”
Décadas de um ensino de panificação baseado nestas técnicas resultou, diz, num cenário em que “todos os padeiros e pasteleiros para massas lêvedas de pastelaria que se formaram nos últimos anos fazem pão e bolos lêvedos da maneira mais fácil, com melhorantes, aditivos e mixes”.
Mário aprendeu também tudo isto, mas o que fez foi “voltar atrás”, às formas antigas de fazer pão, com massa-mãe, fermentações longas e farinhas o menos tratadas possível. E, de repente, começou a perceber que há uma série de gente, desde padeiros como José Miguel Leitão a pessoas que deixaram empregos em áreas completamente diferentes, de economistas a arquitectos, designers ou engenheiros informáticos, que se inscrevem no seu curso para aprender a fazer pão. “Muita gente está a fugir para esta área que acolhe todos e não tem regras nenhumas.”
Está muito satisfeito com os resultados. “Tenho aberto a disponibilidade emocional e de conhecimento das pessoas que querem aprender padaria e pastelaria e tenho tido sucesso porque vários delas, mais cedo ou mais tarde, estão a preparar-se para abrir padarias em Lisboa ou no Porto.” Orgulha-se de passar a mensagem de que “a comida pode dar-nos mais ou menos anos de vida” e por isso é preciso ter com ela um cuidado que muitas vezes nos esquecemos de ter.
É verdade que há cada vez mais informação disponível para os consumidores, mas nem sempre isso tem os resultados desejáveis. “Os rótulos são cada vez mais difíceis de perceber. E o pão das multinacionais anuncia-se como ‘rústico’, ‘dos nossos avós’, ‘da aldeia’, ‘da Idade Média’, mas se lermos o rótulo e virmos que estão lá mais do que quatro ingredientes, temos de perceber que alguma coisa não está certa. E ou queremos ou não queremos”, conclui Mário.
Sementes que significam liberdade
Luís Rocha, o moleiro/padeiro, preocupa-se com a dependência que Portugal tem do estrangeiro no que diz respeito aos cereais. “Se por algum motivo nos fecharem a porta, morremos todos à fome.” Na Maçussa, João Vieira diz a mesma coisa: “Se há uma ruptura no fluxo de abastecimento, só temos pão para dez dias. Quem decide decidiu que se importava porque era mais barato e com esta decisão perdemos as nossas sementes. A minha opinião é que, se é verdade que nunca seremos auto-suficientes, devemos mesmo assim produzir o máximo que pudermos.”
Sabe que o trigo barbela percorrerá sempre um caminho paralelo ao dos trigos importados e aditivados, mas está convencido de que, com as preocupações com a saúde – e sobretudo com o aumento da intolerância ao glúten –, haverá cada vez mais gente interessada neste nicho.
“Entendo isto como uma forma de resistência porque estamos numa situação muito delicada em termos de abastecimento.” E continua: “As sementes também significam liberdade. Se não tiver o meu trigo, tenho de comprar a semente que não está adaptada ao nosso território e pela qual me pedem os olhos da cara. E hoje estamos a falar de oligopólios de sementes, uma situação muito complicada.”
Na sua padaria de Alcântara, Diogo Amorim já está a vender o pão com o trigo barbela. Na Maçussa, Adolfo continua as experiências com a farinha e em breve verá no seu terreno uma seara lindíssima e terá já colhido barbela suficiente para fazer pão em quantidades muito maiores. Quem passar pelo moinho do Outeiro, na Azóia, poderá um dia encontrar lá Luís Rocha a fazer farinha ou apenas a pensar: “Abro as velas e fico lá deslumbrado.”
Ou quem for ao Moinho do Boneco poderá ouvir Fátima contar histórias dos moinhos de Portugal e defender a importância de os preservar. Em breve, o pão de Mário Rolando estará nas padarias que Vítor Sobral (Tasca da Esquina) planeia abrir. E, na padaria de José Miguel Leitão, em Cabeço de Montachique, está quase a vender-se o pão feito como antigamente.
Há sinais de que alguma coisa começa a mudar no mundo do pão em Portugal. “Estamos a dar os primeiros passos”, diz João Vieira. “Em Trás-os-Montes, estão só à espera de um sinal. Se eu disser semeiem porque há hipóteses de ter um preço remunerador, eles vão semear e pode-se satisfazer a eventual procura que venha a haver. Eu vou resistindo e vai aparecendo quem agarre. Eu não desisto, de qualquer maneira.” “Estamos a ser pioneiros”, acrescenta Adolfo Henriques. “Esta que aqui estamos a contar é a história do ressurgimento do barbela”.
Artigo actualizado a 23 de Maio: foi acrescentada uma frase que esclarece sobre a presença de glúten no trigo barbela