Os devotos de Santo António Costa
Por culpa da desastrada estratégia de Passos Coelho, cada mês de vida deste governo dá direito a bolo e soprar de velas.
A grande conquista de António Costa em 2016 não foi o défice de 2,1% – foi ter despertado em muita gente o desejo genuíno de acreditar que aquele défice corresponde a uma melhoria do estado do país. A maior parte dos portugueses quer crer que os 2,1% são sustentados, reais, inteiramente merecidos, uma vitória extraordinária da estratégia económica socialista e a prova definitiva de que o país está no caminho certo. Quer crer que o verdadeiro diabo foi Passos Coelho e que António Costa conseguiu melhores resultados com menos enxofre. Quer ter fé no primeiro-ministro. Essa é, sem dúvida, a maior das suas vitórias.
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A grande conquista de António Costa em 2016 não foi o défice de 2,1% – foi ter despertado em muita gente o desejo genuíno de acreditar que aquele défice corresponde a uma melhoria do estado do país. A maior parte dos portugueses quer crer que os 2,1% são sustentados, reais, inteiramente merecidos, uma vitória extraordinária da estratégia económica socialista e a prova definitiva de que o país está no caminho certo. Quer crer que o verdadeiro diabo foi Passos Coelho e que António Costa conseguiu melhores resultados com menos enxofre. Quer ter fé no primeiro-ministro. Essa é, sem dúvida, a maior das suas vitórias.
A Europa, os mercados e as agências de rating continuam a não ter qualquer confiança em Portugal – mas os portugueses, que não têm um matemático de jeito desde Pedro Nunes, confiam nas contas do primeiro-ministro. Confiam, por exemplo, na sua palavra quando ele garante, em resposta ao cepticismo de Wolfgang Schäuble: “Os números são simples: 2,1% de défice, o melhor em 42 anos de democracia, 2% de saldo primário positivo, diminuição de um ponto da dívida líquida, estabilização da dívida bruta e começo da redução, estabilização do sistema financeiro, criação de 118 mil postos de trabalho líquidos. Estes são os números. E contra factos não há argumentos.”
Mas será que os números são só estes e que não há argumentos contra tais factos? Peguemos num excerto de um artigo do economista João Duque no Expresso da semana passada, dedicado a tentar compreender porque mistério a diferença nas taxas de juro a 10 anos entre Portugal e a Alemanha era de 1,85% quanto Costa tomou posse, e hoje é de 3,85%: “A atividade económica medida através do PIB cresceu menos em 2016 (1,4%) do que em 2015 (1,6%). O consumo interno, apesar de um esforço grande do Governo para o promover, cresceu menos em 2016 (2,3%) do que em 2015 (2,6%). O investimento caiu em 2016 (-0,3%), quando em 2015 tinha subido (4,5%). As exportações cresceram menos em 2016 (4,4%) do que em 2015 (6,1%). O aumento da dívida pública (aproximadamente 7 mil milhões de euros em 2016) foi superior ao défice orçamental do ano (4,2 mil milhões de euros), mostrando que além do adiamento de despesa ainda houve muita que não passou pelo Orçamento.”
Dir-se-á: há números para todos os gostos, que permitem sustentar as teses dos dois lados. Certo. Mas será tão simples assim? É verdade que cada um pega nos números que mais lhe interessam, conforme as suas convicções ideológicas. A esquerda agarra-se ao défice. A direita atira-se à dívida. Mas este não é um simples jogo de soma zero. Nos anos pré-crise, todos reconheciam que Portugal precisava de reformas profundíssimas, em virtude do descalabro demográfico e de várias décadas de políticas públicas insustentáveis. Ora, a discussão sobre esta visão de futuro pura e simplesmente desapareceu, triturada por uma obsessão pelo presente. Muito por culpa da desastrada estratégia de Passos Coelho, cada mês de vida deste governo dá direito a bolo e soprar de velas. Por cada número que supera as expectativas, há fogo de artifício. Costa precisa de muito pouco para fazer a festa e – má notícia para a direita – muitos portugueses querem festejar com ele. Daí este clima ridículo de foguetório na frente interna quando comparado com o absoluto cepticismo na frente externa. Lição de política que nenhum de nós deve esquecer: a melhor receita para perpetuar um estado de graça é viver sob a permanente ameaça de desgraça.