Macron navega contra a corrente
É o mais pró-europeu dos candidatos num país de eurocépticos.
Apesar das sondagens, Emmanuel Macron ainda não ganhou as presidenciais. A campanha oficial começou há dois dias e ele tem de manter mobilizado um eleitorado “heteróclito”, de esquerda, centro e direita, eleitores que conservam em geral a sua identidade ideológica. Esta amplitude é ao mesmo tempo a sua força e a sua vulnerabilidade. Tal como o hábito de não se deixar condicionar por muitas ideias correntes em França.
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Apesar das sondagens, Emmanuel Macron ainda não ganhou as presidenciais. A campanha oficial começou há dois dias e ele tem de manter mobilizado um eleitorado “heteróclito”, de esquerda, centro e direita, eleitores que conservam em geral a sua identidade ideológica. Esta amplitude é ao mesmo tempo a sua força e a sua vulnerabilidade. Tal como o hábito de não se deixar condicionar por muitas ideias correntes em França.
Tornou-se o “homem a abater” pelos outros candidatos. Mas o “todos contra Macron” pode funcionar ao contrário, reforçando a centralidade política do ex-ministro da Economia. Já ninguém o trata como “candidato by default”, cuja popularidade apenas resultaria da saturação dos franceses perante os partidos tradicionais. Candidato cuja contradição fatal era então apontada: “De esquerda para os de direita, de direita para os de esquerda.” Acontece que o “fenómeno Macron” dura há um ano.
A campanha tem sido feita de surpresas e, nas palavras de um politólogo, permanece num “estado gasoso e instável”. Mas desde já se podem confirmar alguns aspectos significativos. O sucesso de Macron exprime o enfraquecimento da clivagem esquerda-direita — não o seu fim — e a erosão dos partidos tradicionais, pela primeira vez em risco de serem eliminados da segunda volta das presidenciais. A campanha eleitoral está “em vias de os matar”, declara Julien Vaulpré, antigo conselheiro de Nicolas Sarkozy. É aconselhável esperar pelo fim das presidenciais e pelas legislativas de Junho, que confirmarão ou infirmarão a eclosão de mudanças no sistema político.
A “avenida central”
Macron lançou sua candidatura em 2016 com base em dois pressupostos. Que a França estava aberta para um programa de reformas e uma opção inequivocamente europeísta. E que a sua candidatura dispunha de um amplo espaço no centro do espectro político. O PS dilacerava-se. À direita, também o partido Os Republicanos (LR) tendia a fracturar-se. Nenhum respondia às aspirações da sociedade.
É um lugar-comum dizer que “as eleições se ganham ao centro”. Quando se candidatou, Macron não se definiu como “o candidato do centro”. Não é um centrista como François Bayrou. É um político que vem do centro-esquerda e que formulou um projecto assente na atracção de eleitores da esquerda, do centro e da direita — o que é diferente. Os seus virtuais eleitores reivindicam essas identidades políticas, embora não decidam o voto por elas.
O PS e o LR abriram-lhe “uma avenida”. Nas primárias não se preocuparam em eleger o candidato com mais probabilidades de vencer as presidenciais. Reagiram numa lógica “identitária”, votando em representantes da ala mais radical dos dois partidos: Benoît Hamon e François Fillon.
Gilles Finchelstein, director da Fundação Jean Jaurès (próxima do PS), explica com dois gráficos o sucesso de Macron. Numa escala de1 a 10, da extrema-esquerda (1) à extrema-direita (10), Hamon é percebido pelos eleitores como muito à esquerda (2,8) e Fillon como excessivamente à direita (8,1), na vizinhança de Marine Le Pen (9,1). Macron é visto ao centro (5,2), com um vasto espaço, da casa 3 à 7, ao seu alcance.
Como se autoposicionam hoje os franceses? Segundo um inquérito do Cevipof (Sciences PO), 22,5% definem-se como esquerda (casas de 1 a 3), 34% como “moderados” (4 a 6) e 36,3% como direita (7 a 10). Finchelstein sublinha um deslizamento para a direita e conclui: Macron “está no lugar certo no momento certo, onde se encontram maioritariamente os franceses”.
Novas clivagens
Muitos analistas estão de acordo com Macron: não será a clivagem esquerda-direita a decidir das eleições mas a clivagem encerramento-abertura — europeísmo contra eurocepticismo; liberalismo económico e reformas contra proteccionismo e defesa de estatutos adquiridos; universalismo contra xenofobia. O politólogo Gérard Grunberg prefere a contraposição “europeísmo-soberanismo”. Para Macron o duelo é entre “progressistas e conservadores” de ambos os campos. A clivagem esquerda-direita está enfraquecida e a separação de águas faz-se hoje “entre soberanistas e adeptos de uma sociedade aberta e globalizada”.
A manterem-se as sondagens, antevê-se uma segunda volta que levaria ao rubro esta nova clivagem: o confronto entre o programa europeísta, social-liberal e de abertura ao mundo, de Macron, e um programa nacionalista, antieuropeu e xenófobo, de Marine Le Pen. Esta perspectiva apavora o PS e o LR. “Um duelo Macron-Le Pen na segunda volta enfraqueceria de forma decisiva o domínio da clivagem esquerda-direita sobre o funcionamento do nosso sistema político”, conclui Grunberg. Ameaça abrir crises drásticas nos dois grandes partidos.
Contra a corrente
Acusado de querer “estar de acordo com toda a gente”, Macron é no entanto um surpreendente um candidato “contracorrente”, que desafia algumas ideias feitas dos próprios eleitores. Num artigo intitulado “O paradoxo Macron”, a analista Chloé Morin, da fundação Jean Jaurès, faz um inventário das “anomalias”, de que cito as principais.
Macron é o mais pró-europeu dos candidatos. Diz: “Não se pode ser timidamente pró-europeu, senão já perdemos.” Saudou a coragem política de Merkel na questão dos refugiados. No entanto, a maioria dos franceses diz concordar com “o fim de Schengen” e é muito céptica sobre a UE.
A “lei do trabalho” do governo Hollande, por ele inspirada, foi rejeitada nas sondagens por 70% dos franceses. Macron propõe-se mantê-la e ir até mais longe. Defende também o fim do “estado de urgência”, contra a opinião de 61% dos franceses. “É liberal no plano económico num país em que a própria direita nunca foi francamente liberal.” Defende a abertura ao mundo no momento em que a grande maioria dos franceses condena a globalização e o papel das empresas estrangeiras. “O eleitorado de esquerda perdoa-lhe o liberalismo económico e o de direita não leva a mal a sua abertura nas questões societais.” Há um ponto decisivo: Macron defende uma atitude resolutamente optimista quando 67% dos franceses dizem que o país está em declínio.
E a esquerda? Cerca de 56% dos adeptos socialistas consideram o programa económico de Macron como o melhor, contra 27% que apreciam o de Hamon.
Recebeu há dias em Berlim a inesperada bênção do filósofo Jürgen Habermas: “Macron distingue-se do resto dos homens políticos pelo facto de abordar os problemas sem rodeios. (...) Macron ousou passar uma linha congelada desde 1789, entre a direita e a esquerda políticas.”