Quase tudo ou quase nada
A Europa estabelece quatro prioridades que, se forem levadas a sério, podem ser um bom ponto de partida. A dúvida é mesmo essa: se vão ser levadas a sério.
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1. Ninguém quis estragar a festa, em Roma, no Capitólio onde, há 60 anos, seis países europeus selaram um novo destino para a Europa. Nem a primeira-ministra polaca, nem o seu homólogo grego. Ambos subscreveram, com os seus 25 pares, a Agenda de Roma, com os seus quatro compromissos para os próximos dez anos. A cerimónia esteve à altura das circunstâncias. A cidade encheu-se das cores europeias, as salas magníficas do Capitólio iluminaram os líderes, as manifestações a favor ou contra encheram as ruas e um Papa a muitos títulos excepcional desafiou-os líderes europeus a não esquecerem os seus valores.
Serviu de alguma coisa? Serviu pelo menos para demonstrar que a Europa ainda respira, mesmo que com dificuldade. A Declaração de Roma acaba por ser uma pequena manta de retalhos para satisfazer toda a gente. Era quase inevitável. A Europa chegou aos 60 anos demasiado dividida para se poder esperar outra coisa. Mesmo assim, estabelece quatro prioridades que, se forem levadas a sério, podem ser um bom ponto de partida. A dúvida é mesmo essa: se vão ser levadas a sério. O risco é que os líderes europeus, regressados às suas agendas domésticas, esqueçam rapidamente o compromisso que assumiram. As eleições na Alemanha, em França e na Itália (ainda sem data marcada) vão ajudar a “esquecer” por algum tempo alguns desses compromissos.
2. A chanceler alemã tem uma batalha interna a travar pelo seu quarto mandato. A Europa está no centro do debate político do seu país e os alemães continuam a apoiar a forma como ela a conduz. Mas Merkel vai ter pela frente um candidato à sua altura, coisa que esteve muito longe de acontecer nas duas últimas batalhas eleitorais que travou com o SPD. Realisticamente, a maioria dos governos europeus sabe que as grandes decisões vão ter de esperar pelo dia 24 de Setembro. A questão que falta saber é se Martin Schulz, o candidato do SPD que conseguiu a proeza de igualar a chanceler nas sondagens, vai estabelecer alguma diferença entre o seu programa europeu e o da chanceler. Em França, os campos estão claramente separados pela questão europeia. Emmanuel Macron não tem um grama de eurocepticismo e elogia a forma como Merkel lidou com os refugiados. A sua eleição pode ajudar a reconstituir uma parceria franco-alemã menos desigual e mais equilibrada (ou seja, menos alemã), fundamental para devolver à Europa uma liderança política. Mas se houve uma preocupação franco-alemã neste compromisso de Roma, ela foi a de abrir as portas a uma Europa que permita a integração a várias velocidades, mesmo que a expressão não conste do texto final.
3. A necessidade de concluir a reforma da União Económica e Monetária (UEM) também vai ter de esperar pelas eleições em França e na Alemanha, até que seja possível um novo entendimento entre os dois países. E essa é, para o Governo de Lisboa, a questão mais importante. Como o primeiro-ministro português repetiu ontem em Roma, Portugal não quer “fugas para a frente”, antes que os “alicerces” estejam suficientemente sólidos. Ou seja, a zona euro tem de completar a sua reforma para estabilizar a moeda, evitar choques assimétricos e criar condições para a convergência económica, antes de se lançar em novos projectos. António Costa conseguiu o que pretendia, e não era muito. A Declaração refere, no seu compromisso número dois, que é preciso incentivar a convergência económica “através do investimento, das reformas estruturais e trabalhando no sentido de completar a UEM”. Falta passar das palavras aos actos.
4. Como superar este desfasamento entre a agenda europeia e as agendas nacionais, é a grande questão que será testada nos próximos meses. O que sabemos hoje é que foi muito difícil negociar um texto que todos pudessem assinar. Tão difícil que o resultado final tira boa parte do sentido a cada um dos quatro compromissos, produzindo um resultado onde cabe tudo à custa de não significar quase nada.
5. Mas há ainda uma verdade que prevalece. Citado pela Reuters, o actual Presidente polaco, Andrzej Duda, tratou de esclarecer que o seu país continua “totalmente comprometido com a Europa”, para lá de todas as divergências. Ele próprio explica porquê: “Hoje, qualquer partido que viesse a público dizer que quer sair da Europa não teria qualquer hipótese na cena política nacional”.
Quando recebeu no Vaticano os líderes europeus, o Papa conseguiu resumir numa frase o que está em jogo para a Europa: “Quando um organismo perde o sentido do caminho a seguir, deixa de ser capaz de olhar em frente, acabará por regredir e, no longo prazo, corre o risco de morrer.” É isso mesmo.