Daqui a dez ou 15 anos o Douro vai estar ainda melhor

Miguel Cadilhe vai ser nesta sexta-feira doutorado honoris causa pela UTAD. O principal obreiro da classificação do Douro como Património Mundial vê os seus préstimos reconhecidos. “Tenho afecto pelo Douro e agora o Douro retribui-me o afecto”, explica.

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Miguel Cadilhe, 73 anos, foi o principal mentor do processo de candidatura do Alto Douro Vinhateiro à lista do Património Mundial da UNESCO. Dezasseis anos depois do sucesso da candidatura, o economista recorda os passos dessa história e traça o perfil das mudanças que mudaram a face do vale. Sobre a distinção que recebe nesta sexta-feira, Miguel Cadilhe não esconde o orgulho por ter feito “alguma coisa por aquela terra e por aquela gente”. E fê-lo, sublinha, sem ter terra nem família na região. Uma história de afectos.

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Miguel Cadilhe, 73 anos, foi o principal mentor do processo de candidatura do Alto Douro Vinhateiro à lista do Património Mundial da UNESCO. Dezasseis anos depois do sucesso da candidatura, o economista recorda os passos dessa história e traça o perfil das mudanças que mudaram a face do vale. Sobre a distinção que recebe nesta sexta-feira, Miguel Cadilhe não esconde o orgulho por ter feito “alguma coisa por aquela terra e por aquela gente”. E fê-lo, sublinha, sem ter terra nem família na região. Uma história de afectos.

Vai ser doutorado honoris causa pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). O que fez de tão importante para merecer esta distinção?
Isso tem de perguntar ao reitor da UTAD.

De outra forma: que contributos deu à região para ser distinguido?
A deliberação da UTAD refere o papel que tive na candidatura do Douro a Património Mundial.

A ideia de lançar essa candidatura foi sua?
Vamos lá ver: a ideia de propor o Alto Douro Vinhateiro (ADV) a Património Mundial não era nova. Estava aliás muito utilizada, mas de uma forma inconsequente. Havia uma certa impotência para levar até ao fim essa ideia. Sentia-se que havia mérito, que havia possibilidades, falava-se e escrevia-se sobre isso, havia algumas movimentações, mas não havia remate à baliza.

O seu papel neste processo foi ter iniciado o processo?
Tal e qual. Claro que precisávamos de uma instituição para servir de instrumento. Eu era presidente da Fundação Rei Afonso Henriques (FRAH) e a FRAH, dedicada ao vale do Douro, com sede em Zamora, poderia assumir esse papel.

O que faltava mais? Dinheiro, congregação de esforços?
Era tudo. E vontade de levar as coisas do início até ao fim. Como a fundação era hispano-portuguesa era preciso mostrar a todos, espanhóis e portugueses, que no Douro haveria alguma zona, ou zonas, com méritos bastantes para uma candidatura à UNESCO. E então tive o cuidado diplomático de começar a constituir uma comissão mista de especialistas de um lado e do outro que tiveram por mandato o estudo, o levantamento do melhor trecho do vale do Douro para se candidatar a Património da Humanidade. Então, essa comissão concluiu por unanimidade que o melhor trecho do vale para essa candidatura era o ADV português. Eu fiquei tranquilo para que fosse a fundação a encabeçar essa candidatura.

Não deixa de ser curioso que quem financiou os estudos foram fundamentalmente empresas espanholas, porque na altura era a Iberdrola e a Endesa que mais financiavam a fundação.
Não. Esse foi o meu segundo cuidado. Se o melhor trecho está do lado de Portugal, a FRAH não iria gastar um tostão, uma peseta, na altura, com a candidatura. Bati à porta de algumas empresas ou instituições que, de algum modo, estivessem relacionadas com o Douro. Foi o Instituto do Vinho do Porto, foi a EDP, que tem barragens no Douro… eu fui a Lisboa ter com presidente da EDP e disse-lhe assim: ‘Ouça lá, o ADV tem de ser candidato a Património Mundial da UNESCO’. Ele respondeu: ‘O que é que temos a ver com o ADV?’. ‘O que é que têm a ver? Estão lá com barragens a retirar proveitos, agora é altura de fazer um pequeno esforço, uma gota no oceano’. E ele concordou. A Caixa de Depósitos também entrou e tinha já o pecúlio quase, quase estabelecido quando um cidadão pede para falar comigo: o João Macedo Silva, o dono da RAR, que me disse simplesmente: ‘Eu confio em si, acredito nessa ideia de levar o ADV a Património Mundial, tenho ascendência no Douro’ e entrega-me um cheque em nome pessoal, um cheque muito avultado, que preencheu completamente as necessidades que tínhamos para financiar a candidatura. Este gesto do João Macedo Silva nunca mais esqueci.  

Como acha que a região tem evoluído nos últimos 20 anos?
Acho que nos últimos 15 anos, que são os anos da atribuição da classificação do Património Mundial, o Alto Douro teve uma evolução que distingue este tempo dos tempos anteriores. Há um antes e um depois. Não é tudo devido à classificação. O Património Mundial espoletou uma série de actos e de consequências e de iniciativas. Passou-se a prestar muito mais atenção ao Douro. Se a classificação tivesse sido concedida na segunda metade dos anos 80, o encerramento da linha férrea do Douro não teria acontecido. Não teria acontecido, seguramente. É uma coisa que me custa. Eu estava no Conselho de Ministros, em 1988, se não estou em erro, quando o ministro dos Transportes propõe: ‘Vamos suspender a linha por uns tempos porque precisa de grandes obras de manutenção e beneficiação’. Com se sabe, politicamente, usa-se o argumento de suspender para melhorar, mas a melhoria nunca vem e a suspensão é definitiva. Foi um sacrilégio que só foi possível porque o Douro estava longe de Lisboa. Se a linha fosse ali entre Lisboa e não-se-o-quê, se fosse pelo Tejo acima, eu acho que isto não teria acontecido.

Portanto, o Património Mundial tornou o Douro mais importante para o país?
Muito mais. As pessoas ficaram um pouco espantadas. ‘Mas, o quê, isto já estava lá, já existia?’ A classificação mudou até o modo de ver dos políticos, dos intelectuais, dos empresários. Passaram a ver o ADM, e Trás-os-Montes também, de outra perspectiva. A grande projecção dos vinhos de mesa do Douro é quase concomitante com a classificação. Há aqui relação de causa-efeito? É capaz de haver alguma coisa. Pelo menos há uma ajuda. Os empresários começaram a ver que o Douro podia ter interesse em termos de turismo. Passados uns anos, em 2003, eu estava na Agência Portuguesa para o Investimento (API) e pus a API a preparar dossiers especiais de investimento, que eram levados depois a investidores. O primeiro dossier especial que fizemos foi sobre “investir no turismo no Douro”. O turismo no Douro não tinha grandes equipamentos. Havia uma coisa ou outra no Pinhão. Reunimos um fórum de embaixadores dos grandes países investidores, no Pinhão, e convidei dois empresários para irem lá. Quem eram? O Américo Amorim, que está no Douro; e o Mário Ferreira, um jovem empresário que estava a dar os primeiros passos com uma barcaça. Foi premonitório.  

O que justifica essa dedicação tão intensa ao Douro? Raizes familiares?
Não tenho família no Douro. É uma relação de afecto, um acto de alguma inteligência também. Aqui há uns tempos dou por mim a pensar: ‘mas porquê esta minha inclinação, se nasci em Barcelos e vivi na Póvoa e no Porto?’ Mas, às tantas, há aqui uma reminiscência do serviço militar, quando vou para Lamego, e depois de vir casar volto para Lamego com a minha mulher. Depois há pontes, há igrejas, há castelos, há paisagens… tudo isso me criou uma perplexidade: como é que isto está aqui esquecido? Só tenho este amargo de boca: ser ministro das Finanças e não ter dito: “O ministro das Finanças encontra no orçamento dinheiro para financiarmos já as obras da linha”.

Por detrás das maravilhas, os indicadores demográficos do Douro são péssimos e o rendimento per capita é dos mais baixos do país. O que é, de alguma forma, um paradoxo.
Esses são elementos estruturais, que demoram muito tempo a mudar. Não é de repente que, numa região como o Douro, o rendimento per capita que é baixo passa para a média do país. É preciso gradualismo e tempo. Agora, estou convencido que daqui a dez ou 15 anos a realidade do Alto Douro, e de Trás-os-Montes por arrastamento vai ser muito diferente, para melhor, do que era ou do que é hoje. Estou optimista.

O que representa para si este doutoramento honoris causa?
O reitor da UTAD (Fontainhas Fernandes) queria ver se eu aceitava ser honoris causa e eu senti-me muito honrado. Lá veio o afecto novamente, que eu não sei explicar muito bem. Pensei: ‘Meu Deus, não vejo uma alternativa que me preenchesse tanto como este convite da UTAD’. Porque é um convite que me sugere carinho, que me suscita afecto, gratidão, sensibilidades, sentimentos… Está muito acima da razão. E por outro lado suscita-me isto: eu de facto não sendo de lá fiz alguma coisa por aquela terra e por aquela gente. Não fiz com a intenção de ter reconhecimento. Eu fiz alguma coisa por aquela terra, para lá daquela coisa da linha férrea que não fiz. Eu nem lá uma quinta tenho… Nada. O reitor da UTAD faz-me um convite que me toca em cheio e, instantaneamente, disse que sim. É isto: tenho afecto pelo Douro e agora o Douro retribui-me o afecto.