Acabou-se o pudor político de Cláudia Dias

Na segunda de sete peças do ciclo iniciado em 2016, Cláudia Dias vai buscar o título ao Manifesto Comunista e centra o discurso sobre os refugiados num recuo histórico que a leva à Palestina. Terça-Feira: Tudo o que É Sólido Dissolve-se no Ar estreia-se esta semana no Teatro Maria Matos.

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Ao pôr em marcha a série Sete Anos Sete Peças com que quis reclamar o direito a um futuro e à sua planificação (mesmo que num cenário de incerteza e precariedade), Cláudia Dias escolheu voltar sempre a um mesmo dispositivo, que se repete em todos os sete anos e com cada um dos sete artistas que convida a trabalhar consigo. Quando entram os dois no estúdio, fazem-no em estado absolutamente virgem, sem qualquer ideia que vá à frente e permita atalhar ideias ou pré-formatar o encontro. São duas pessoas, frente a frente, olhos nos olhos, num primeiro momento de embate, sem regras estabelecidas. “E é aí que tudo nasce”, diz a artista ao Ípsilon.

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Ao pôr em marcha a série Sete Anos Sete Peças com que quis reclamar o direito a um futuro e à sua planificação (mesmo que num cenário de incerteza e precariedade), Cláudia Dias escolheu voltar sempre a um mesmo dispositivo, que se repete em todos os sete anos e com cada um dos sete artistas que convida a trabalhar consigo. Quando entram os dois no estúdio, fazem-no em estado absolutamente virgem, sem qualquer ideia que vá à frente e permita atalhar ideias ou pré-formatar o encontro. São duas pessoas, frente a frente, olhos nos olhos, num primeiro momento de embate, sem regras estabelecidas. “E é aí que tudo nasce”, diz a artista ao Ípsilon.

Em Segunda-Feira: Atenção à Direita, Cláudia Dias e o dramaturgo galego Pablo Fidalgo Lareo ficaram em oposição e em luta desde o início, assumindo dois lados do confronto; desta vez, nos primeiros segundos de Terça-Feira: Tudo o que É Sólido Dissolve-se no Ar, o clown italiano Luca Bellezze deixou de estar silenciosamente à sua frente para se colocar silenciosamente a seu lado. “Ele fez este gesto inaugural de não serem duas pessoas a olharem uma para a outra, mas duas pessoas a olhar para qualquer coisa”, lembra Cláudia. A partir dessa primeira imagem, começaram a pesquisar sobre o lugar que estariam a ocupar e para onde o seu olhar estaria a ser dirigido. Em seguida, as improvisações com recurso à técnica de composição em tempo real acabaram por apontar-lhes o caminho de um material: o fio. Depois, foi só segui-lo.

O fio branco, desenhando sobre um fundo preto, era já um material que Luca incorporava há vários anos nas suas próprias criações. Mas era um elemento novo para Cláudia, com o potencial de ir desenterrar memórias de infância, arquivadas com a etiqueta ‘Vasco Granja’. Em específico, a esses programas de cinema de animação que plantaram todo um vasto catálogo de imagens nas cabeças das crianças crescidas nas décadas de 1970 e 80, a artista foi recuperar a obra de Osvaldo Cavandoli, criador de uma personagem feita de um único traço que ficou conhecida como La Linea. Essa linha com que Cláudia e Luca começaram a improvisar acabou, fatalmente, por desenhar um corpo no chão, vítima de um homicídio. Mas um homicídio que, assim que se foi aclarando “uma dramaturgia relacionada com a questão dos refugiados”, era afinal um homicídio colectivo – de muitas vítimas mas com ainda mais culpados.

“A partir do momento em que chegámos à questão dos refugiados”, diz Cláudia Dias, “que é um largo tema, comecei a pensar que tenho muito pudor em criar com estas grandes famílias, em dizer ‘refugiados’, ‘cultura’ ou ‘mulheres’ – porque estas grandes famílias são niveladoras.” Ou seja, se falar de mulheres como um grupo homogéneo é uma falácia – “Eu não tenho nada a ver com a Assunção Cristas”, exemplifica, “a questão é sempre fundamentalmente ideológica” –, falar de refugiados não é menos enganador. Daí que, ao invés de se ficar por uma bem-intencionada, generalista e inofensiva perspectiva de direitos humanos, a artista quis apontar o dedo, ser concreta, deitar fora o pejo de nomear quem acusa, sem se deixar manietar pelo “medo de não aceitação, não circulação, não venda, não investimento, etc.”. “À medida que vou avançando neste projecto e vou ficando mais velha – porque as duas coisas concorrem em simultâneo – acho que começo a perder o pudor em afirmar que o meu trabalho é, para além da criação de objectos artísticos, fundamentalmente político”, admite.

No caso de Terça-Feira: Tudo o que É Sólido Dissolve-se no Ar (frase retirada do Manifesto Comunista), a principal decisão política passou por não se fechar no presente e nos acontecimentos mais recentes, e recuar até chegar à (questão central da) Palestina. É lá que chegaremos entre 29 de Março e 2 de Abril no Teatro Maria Matos, Lisboa, e a 29 de Abril no Teatro Rivoli, Porto.

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ALÍPIO PADILHA

Desconhecimentos

O afunilamento desenhado por esse recuo foi ancorado em dois encontros que Cláudia Dias procurou ter para descobrir o fio à meada. Primeiro, a conversa com Ilda Figueiredo, presidente do Conselho Português para a Paz e Cooperação e ex-deputada pelo Partido Comunista Português, com quem debateu as razões históricas para a actual situação dos refugiados; depois, vários encontros com José Goulão, jornalista que se especializou em questões do Médio Oriente. Só depois, quando as sessões de trabalho com Luca tinham já levado à acumulação de uma série de imagens, começou a escrever um texto assente na personagem de uma criança, Omar, “vítima actual da guerra da Síria, que sai da Síria e vem para a Europa”, e em que o recurso serve para a apresentar como último membro de uma cadeia familiar feita de deslocações da Cisjordânia para o Líbano, daí para a Jordânia, e depois para a Síria. Em suma, uma ficção, que “pode corresponder à história de muitas famílias de ascendência palestiniana”, mas que aparece também como sinal do desconhecimento sobre o outro.

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ALÍPIO PADILHA

Omar, cuja história pessoal de dez anos carrega já todo o peso milenar de uma História colectiva, não sabe que em 2017 passam cem anos sobre a Revolução de Outubro, não sabe (ainda) que libaneses e palestinianos combateram lado a lado contra Israel, não sabe que uma loja portuguesa vende disfarces de refugiados no Carnaval. Da mesma maneira que Cláudia não sabia que Jesus Cristo foi baptizado no rio Jordão, não sabia que a povoação Ein Hawd foi rebaptizada como Ein Hod e transformada em colónia de artistas, nem sabia que uma multinacional de mobiliário vendia tendas para refugiados a 2500 euros. Aquilo que aqui interessa a Cláudia Dias é sublinhar o desconhecimento em relação ao outro, mas também o facto de no dia-a-dia haver um esforço muito reduzido para furar um discurso incapaz de sair do presente e fechado numa “atitude mais caritativa”. Se esse desconhecimento não lhe parece recriminável, Terça-Feira funciona também como uma repetida alfinetada que possa despertar o desejo de investigar, pensar e procurar um olhar crítico sobre os factos atirados de forma avulsa para a actualidade noticiosa.

Os quatro discursos simultâneos que acontecem em palco – gráfico, sonoro, performativo e textual – fazem parte de um “recuo ou exercício de memória” que a arte deve assumir. “O nosso papel é olhar para o mundo e produzir conhecimento”, diz Cláudia. “Um conhecimento não académico que traduz sempre um olhar para o mundo.” E, no seu caso, cada vez mais despreocupado em engrossar a obsessão contemporânea da construção de consensos. O confronto faz parte. E ela não lhe quer fugir.