As ilusões da democracia radical
Chantall Mouffe abre as portas a concepções dos Direitos do Homem contrárias às que resultam do contributo de toda a modernidade filosófica Ocidental. A meu ver, esta posição é francamente deplorável.
Chantal Mouffe, uma das principais teóricas da chamada “democracia radical”, esteve por estes dias no nosso país e concedeu uma elucidativa entrevista a este jornal, conduzida por António Guerreiro (PÚBLICO, 20-03-2017). A filósofa belga é hoje uma das principais fontes de inspiração dos movimentos de extrema-esquerda que se reclamam do populismo e que têm vindo a adquirir alguma expressão política em vários países europeus, depois da morte do também filósofo Ernesto Laclau, com quem foi aliás casada, tornou-se na grande referência teórica do Podemos, em Espanha.
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Chantal Mouffe, uma das principais teóricas da chamada “democracia radical”, esteve por estes dias no nosso país e concedeu uma elucidativa entrevista a este jornal, conduzida por António Guerreiro (PÚBLICO, 20-03-2017). A filósofa belga é hoje uma das principais fontes de inspiração dos movimentos de extrema-esquerda que se reclamam do populismo e que têm vindo a adquirir alguma expressão política em vários países europeus, depois da morte do também filósofo Ernesto Laclau, com quem foi aliás casada, tornou-se na grande referência teórica do Podemos, em Espanha.
Tal como Ernesto Laclau, e não raro em conjunto com este, Mouffe desenvolveu nas últimas décadas uma reflexão crítica em relação àquilo que podemos designar como um consenso liberal prevalecente nas democracias contemporâneas. É precisamente esse consenso que ela contesta.
Na obra On the Political, editada em 2005, Chantall Mouffe atribui uma especial importância à dimensão do conflito e do antagonismo, que tem por constitutiva das sociedades humanas. À política caberia criar uma ordem e organizar a coexistência humana no contexto dessa conflitualidade constitutiva. Partindo desta concepção, a autora estabelece como principal desafio colocado às sociedades democráticas o da transformação do conflito antagonístico num conflito agonístico. O que quer isto dizer? Numa relação antagónica, o conflito tem um carácter absoluto e a relação “nós”/”eles” é percebida como um confronto entre inimigos que não partilham qualquer horizonte comum; no caso do agonismo, apesar dessa relação se manter sempre no âmbito do conflito, excluindo qualquer perspectiva de entendimento racional, há uma partilha de um espaço simbólico comum que transforma o inimigo em adversário. A autora procura desta forma afastar-se do radicalismo de Carl Schmitt, pensador de extrema-direita cuja ascendência assume, o qual estabeleceu a díade “amigo/inimigo” como fundamento último da política, negando qualquer forma de pluralismo interno e preconizando um modelo de democracia plebiscitária de natureza anti-parlamentar.
Para Mouffe, a sobrevivência dos actuais regimes democráticos passa necessariamente pela valorização de um confronto político claro entre a direita e a esquerda, em torno de representações políticas manifestamente diferenciadas e insusceptíveis de qualquer espécie de síntese racional, correspondendo à esquerda a função de assegurar a elaboração e representação das reivindicações populares. Nessa óptica, Mouffe deplora os consensos ao centro, os quais responsabiliza aliás pelo surgimento de correntes antidemocráticas e populistas associadas à extrema-direita. O único consenso que admite situa-se no plano do simbólico e tem por objecto a própria natureza do campo em que decorre a confrontação democrática. Rejeita, assim, as chamadas democracias dialógicas ou deliberativas e proclama as vantagens daquilo que poderemos designar como uma democracia “decisional”.
O pensamento de Chantal Mouffe constitui uma tentativa de fundamentação original de um radicalismo democrático que se pretende compatível com as regras do jogo inerentes às democracias liberais. Recusando deliberadamente a atribuição de qualquer tipo de prevalência ao indivíduo, Mouffe aproxima-se de algumas teses comunitaristas. Por outro lado, contrariamente ao pensamento marxista, a autora não atribui centralidade à esfera económica, ainda que reconheça a sua enorme importância, e rejeita uma visão determinista da evolução histórica, situando-se assim no âmbito de uma esquerda pós-marxista.
Parecem-me evidentes as contradições e insuficiências desta teoria. Desde logo, apontaria uma excessiva desvalorização do potencial dialógico no interior das democracias liberais. O pensamento da autora pode conduzir a uma polarização tal do confronto que transforme o momento da decisão política num exercício de violência do vencedor contra o vencido. Ao valorizar uma ideia de contradição irredutível, que não pode ser superada pela via do diálogo racional ou da mediação de interesses, a autora abre caminho a um concepção da política e da democracia potencialmente liberticida, risco que ela tenta obviar remetendo para a existência de uma dimensão simbólica comum que permite justamente a transformação dos inimigos em adversários. Só que, não vindo esse espaço simbólico acompanhado de qualquer tipo de confiança na capacidade de abertura aos argumentos racionais dos contendores, tal afigura-se insuficiente para a fundamentação de uma ordem política liberal.
Esta teoria crítica da democracia liberal comporta o risco do surgimento de novas formas de despotismo, e, porque integra uma significativa valorização da dimensão passional, esse despotismo pode mesmo revestir-se de características cesaristas ou caudilhistas.
Não será por acaso que a autora se empenha em salientar uma profunda divergência com um pensador como Jurgen Habermas, denotando assim uma total descrença nas virtudes da “razão comunicativa”. Essa atitude leva-a mesmo a pôr em causa a possibilidade de existência de qualquer tipo de princípios universais, aderindo deste modo às teses de um relativismo cultural extremo que, no limite, podem fundamentar práticas e comportamentos atentatórios da dignidade humana. Enquanto Habermas considera que há uma ligação íntima e conceptual entre os conceitos de Estado de Direito e de democracia política, Chantall Mouffe remete tal relação para a ordem da contingência. Abre assim as portas a concepções dos Direitos do Homem contrárias às que resultam do contributo de toda a modernidade filosófica Ocidental. A meu ver, esta posição é francamente deplorável.
Por último, há uma pergunta que não pode deixar de ser colocada: as sociedades democráticas não lucraram bastante com a existência de um forte núcleo de consensos ao centro, que permitiram, entre outras coisas, a afirmação da paz, a consolidação das democracias representativas, das liberdades individuais, da tolerância e do respeito pelo outro e o surgimento de um Estado-providência que, apesar de tudo, tem conseguido resistir aos ataques de que é alvo? As democracias vivem, como é sabido, de consenso e de dissenso. Nesse sentido, uma relação de natureza agonística é aceitável, desde que não sucumba à tentação de eliminar uma vertente liberal sem a qual as democracias rapidamente correm o risco de se metamorfosearem em tiranias do maior número, ou, pior do que isso, na tirania de alguns, muito poucos, que se arrogam a pretensão de falar em nome desse maior número.