A era Trump(a) ou como Guy Debord tinha razão
O fim da História é um agradável repouso para todo o poder, pois desta forma garante o sucesso do conjunto das suas intenções ou pelo menos o ruído do sucesso.
Recentemente, em artigo neste jornal, referia-se o surgimento de explicações para o fenómeno Trump partindo de autores como Orwell ou Arendt, esquecendo-se aquele que porventura será o mais acutilante crítico da situação em que hoje nos encontramos, verdadeiro visionário que teve a coragem de iniciar a sua crítica exactamente quando nada o fazia prever, menos de cinco anos após a segunda guerra mundial, quando o mundo finalmente respirava de alívio e cedia às leis do mercado e às delícias do consumismo, tal criança se entrega deleitada aos doces depois de um violento castigo.
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Recentemente, em artigo neste jornal, referia-se o surgimento de explicações para o fenómeno Trump partindo de autores como Orwell ou Arendt, esquecendo-se aquele que porventura será o mais acutilante crítico da situação em que hoje nos encontramos, verdadeiro visionário que teve a coragem de iniciar a sua crítica exactamente quando nada o fazia prever, menos de cinco anos após a segunda guerra mundial, quando o mundo finalmente respirava de alívio e cedia às leis do mercado e às delícias do consumismo, tal criança se entrega deleitada aos doces depois de um violento castigo.
Guy Debord não estava só, é certo, outros como ele empreenderam com igual coragem a mesma batalha que terá o seu auge no Maio de 68 e a sua maior esperança na Revolução de Abril (1). Se inicialmente Debord acreditava que a “critica teórica” e a “prática da agitação”, destinada a transformar as condições de uma vida ao serviço do império da servidão, seriam a via mais eficaz para alcançar a Revolução, os acontecimentos do pós 68 e o modo como se foi afirmando a “Sociedade do Espectáculo”, retiram-lhe, em grande medida, esse optimismo.
Quando se fala de Guy Debord associa-se, de imediato a expressão “Sociedade do Espectáculo” limitando-se as análises a aspectos superficiais do conceito e da sua obra, uma obra que passa pela escrita, pelo cinema mas sobretudo pela acção, pois para ele o que realmente importava não era interpretar o mundo mas sim transformá-lo.
Se olharmos hoje para o significado da mensagem contida no livro Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo editado em 1988, que aprofunda o que dissera antes, é possível facilmente compreender o que actualmente se passa no mundo, sendo essa porventura a maior vitória de Debord, algo que irá soar para sempre, tal como acontece com as obras maiores.
Se tivermos em conta como hoje “tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação” com a proliferação de redes sociais e de dispositivos móveis adaptados pensados para levar esta lógica ao seu expoente máximo, e como tudo isto tem uma aceitação à escala planetária, é possível concluir que Debord tinha razão: o “espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. E é assim que se explica também o surgimento de Donald Trump, exímio utilizador das técnicas de marketing político, da ascensão com base em negócios escuros, das redes sociais, da utilização de dispositivos móveis que tudo permitem, um produto do mundo do espectáculo televisivo onde ficou célebre com o reality show que abria ao som de money, money, money e acabava com ele, de dedo em riste, gritando You’re Fired!
Diz Debord: “num mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso” e o espectador alienado é assim o produto ideal desta sociedade pois “quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo”.
O mundo real em que vivemos retrata-se assim na frase: “quando o reino autocrático da economia mercantil acedeu a um estatuto de soberania irresponsável é o conjunto das novas técnicas de governar que acompanham esta forma de reinar”. Segundo Debord, esta nova forma de governo obedece a cinco características essenciais: a renovação tecnológica incessante; a fusão entre a economia e o Estado; o segredo generalizado; o falso sem réplica e o perpétuo presente.
Quanto à primeira constatação - Renovação tecnológica incessante - é óbvia a crença e a aposta absoluta sem qualquer hipótese de refutação ou crítica, nas chamadas novas tecnologias. Esta estratégia que é unanimemente apoiada tanto por políticos como pelo comum dos cidadãos, celebra efusivamente a ocupação do espaço público, dos museus, das escolas, dos jardins com wireless, écrans tácteis e outras maravilhas, de modo a tornar os “cidadãos mais capacitados”, facilitar o emprego sem escritório e responder assim às necessidades dos trabalhadores pois, ao mesmo tempo que ampliam a satisfação, aumentam a produtividade. E é assim que mansamente os “telefones inteligentes” vão invadindo o nosso mundo mas, mais grave, o mundo das crianças com o encolher de ombros dos pais que consideram esta uma forma natural de acompanhar os tempos modernos. Como disse Debord "quando ser absolutamente moderno se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano, aquilo que o honesto escravo acima de tudo receia é que possam suspeitar de passadista”.
A segunda realidade - fusão entre a economia e o Estado transformou-se de tal modo no discurso único que nada mais escapa e, mesmo que todos os cidadãos se desdobrassem em pagamento de impostos, nunca estes seriam suficientes para conter a sede imparável das Bolsas ou das agências de rating destinadas que estão a controlar as crises oportunas que surgiram antes e irão surgir sempre que algum governo se atreva a contrariar o jogo, reforçando um Serviço Nacional de Saúde ali, ou um complemento de sobrevivência acolá.
O “segredo generalizado” encontra-se, segundo Debord, como suporte do Espectáculo, sendo o elemento mais decisivo da sua forma de operar e as perseguições a todos os que se atrevam a denunciar este Segredo são conhecidas, assim como são os silêncios e a impunidade de certos crimes numa justiça a diferentes velocidades e desvairados critérios.
O “falso sem réplica” corresponde ao já conhecido mundo das “pós-verdades”, do ruído informativo que anestesia e impede a busca do verdadeiro sentido das coisas, criando espaço para se poder afirmar como Debord o fez “que jamais a censura foi tão perfeita”. Antigamente, dizia Guy Debord, “conspirava-se contra a ordem estabelecida, agora conspira-se a seu favor”.
Por último a ideia do “perpétuo presente” com a conclusão que “a primeira intenção do domínio espectacular é fazer desaparecer o conhecimento da História em geral”, organizando deste modo a ignorância. O fim da História é um agradável repouso para todo o poder, pois desta forma garante o sucesso do conjunto das suas intenções ou pelo menos o ruído do sucesso. “Todos os usurpadores quiseram sempre fazer esquecer que acabaram de chegar”.
Apesar de um retrato negro e tão actual da sociedade, Debord não deixa de lançar algumas sementes de esperança para o futuro ao exaltar a beleza da passagem do tempo ou de como afinal “os rios das revoluções voltam onde começaram, para de novo fluírem”.
(1) Ver artigo na revista Punkto e na revista Flauta de Luz, versão papel do mesmo texto. Neste artigo damos a conhecer as relações de Guy Debord com um pequeno grupo de portugueses na altura da Revolução de Abril.