‘Brexit’: “Os dois lados estão a pôr a política em primeiro lugar”

Charles Grant, director do Center for European Reform, diz que a pressão dos eurocépticos pode impedir acordo com a UE. E avisa que o Reino Unido tem menos trunfos do que diz ter

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Theresa May vai accionar a 29 de Março o artigo 50 do Tratado de Lisboa Laurent Dubrule/EPA

Theresa May vai accionar a 29 de Março o artigo 50 do Tratado de Lisboa, ponto de partida para as negociações de saída da UE. Grant, antigo correspondente da revista Economist e fundador do think-tank pró-europeu britânico, não está optimista e lamenta que, em Londres e Bruxelas, as questões económicas tenham sido relegadas para segundo plano.

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Theresa May vai accionar a 29 de Março o artigo 50 do Tratado de Lisboa, ponto de partida para as negociações de saída da UE. Grant, antigo correspondente da revista Economist e fundador do think-tank pró-europeu britânico, não está optimista e lamenta que, em Londres e Bruxelas, as questões económicas tenham sido relegadas para segundo plano.

Olhando para os últimos meses, uma das coisas que mais salta à vista é o elevado nível de incompreensão entre o Reino Unido e a União Europeia — a imprensa britânica fala em resgate para se referir ao montante que o país terá de pagar antes de sair da UE, Bruxelas acusa o Governo britânico de estar desligado da realidade. Isto vai dificultar muito as negociações…
Sim, Bruxelas acredita que os britânicos estão desligados da realidade, que não percebem quão fraca é a sua posição negocial. E receia que a pressão da imprensa eurocéptica e de alguns políticos seja tão grande que a primeira-ministra, Theresa May, não se sinta politicamente forte para fazer as cedências necessárias a um acordo, por exemplo sobre as contribuições [que lhe são pedidas] para o orçamento comunitário em vigor. Temem que a pressão a leve a bater com a porta, fazendo com que o Reino Unido saia sem acordo, o que seria desastroso para o país.

Mas a UE também está a jogar duro...
Sim, mas a UE tem interesse em assumir uma posição dura. O que eu lamento é que ninguém esteja a dar a devida importância ao ponto de vista económico. Ninguém no Reino Unido pensaria deixar o mercado único ou a união aduaneira se estivesse realmente preocupado com a economia, porque essa saída vai ter consequências bastantes graves. Também a UE, se colocasse em economia em primeiro lugar, estaria mais disponível para negociar acordos especiais, sobre a libra ou a City, que a iriam beneficiar. Mas ninguém parece estar disponível a ceder. Na Europa, domina a ideia de que é preciso mostrar que o Reino Unido vai ficar pior com o “Brexit”, para desencorajar outros a seguir-lhe o exemplo, e isso é mais importante do que o resultado económico destas negociações. É lamentável que estejam a por os interesses políticos acima de todas as outras preocupações.

É uma novidade, depois de anos em que a economia se sobrepôs a tudo. Aqui é a retórica política que domina.
Sim, mas não é só retórica. Há também questões de fundo. Eu percebo que se deram um óptimo acordo aos britânicos — se pudessem permanecer no mercado único e ainda assim restringir a liberdade de circulação — todos os outros países poderiam sentir-se tentados a conseguir o mesmo. Eu entendo que há uma lógica política naquilo que os 27 estão a fazer e também entendo a lógica política naquilo que Theresa May está a fazer. Se ela não optar por um “hard Brexit” vai ficar em sarilhos com parte do seu partido e com o muito barulhento lobby eurocéptico. Para ela é muito mais fácil o caminho do “hard Brexit”, mas o resultado económico desta estratégia não será bom.

Num artigo recente defende que o tempo será o pior inimigo de May nas negociações. Ela sabe disso, mas não o admite. Não seria melhor preparar os eleitores para as dificuldades das negociações?
Neste momento há um ambiente de extremo optimismo no Governo, os ministros e funcionários estão a ser encorajados a não falar sobre as dificuldades, mas sobre as oportunidades que este processo pode gerar. O que não é um problema, até certo ponto. Mas há o perigo de acabar por não haver um número suficiente de pessoas que sejam capazes de dizer a verdade a quem decide. E temo também que não haja em Downing Street um número suficiente de pessoas que saibam o suficiente sobre a forma como a UE funciona e por causa disso avaliem mal a situação. Vimos isso no discurso de Lancaster House [quando May apresentou os objectivos para as negociações] ao dizer que será capaz de negociar a saída da UE e concluir um acordo de livre comércio no prazo de dois anos, o que é simplesmente ridículo. Toda a gente que percebe como a UE funciona sabe que as coisas não se passam assim. Não é possível negociar um acordo de comércio em poucos meses. O Governo diz isso porque não percebe o suficiente sobre a UE.

Não percebe ou está a jogar com a retórica, como aconteceu no referendo?
Sim, estou certo que algumas pessoas sabem que não é possível negociar tudo em dois anos. Agora porque é que o dizem o contrário, porque é que estão a enganar as pessoas e a criar problemas para eles próprios? Quando as pessoas descobrirem a verdade podem virar-se contra May. Acho que dizer a verdade é sempre um bom princípio, mesmo quando nos cria problemas a curto prazo, torna as coisas mais fáceis a longo prazo. Gostava que Downing Street tivesse sido um pouco mais transparente sobre o custo e as dificuldades que temos pela frente.

Falava há pouco na pressão interna, sobretudo da imprensa eurocéptica. Prevê um endurecimento destas atitudes ou espera que abrandem quando as negociações começarem?
Não, a imprensa não vai abrandar a pressão. A sua agenda antieuropeia não podia ser mais dura. Mas isso não significa que May faça sempre o que eles querem. Acredito que chegará o momento em que ela vai distanciar-se e optar por soluções que não agradam aos jornais. Não tenho a certeza, mas acredito que há boas hipóteses de ela acabar por negociar um acordo de transição, o que vai irritar parte da imprensa, porque isso implica aceitar a autoridade do Tribunal de Justiça Europeu durante a transição. Poderá também acabar por ceder na questão das contribuições para o orçamento europeu. Ela vai ter de tomar algumas decisões e acabar por irritar o Sun, o Daily Mail ou o Telegraph. Mas vai ter de os enfrentar.

Neste momento tem margem para isso, porque goza de uma enorme popularidade. Mas no futuro isso pode não acontecer.
Ela pode pensar que está numa posição mais fraca do que realmente está. Mas a verdade é que o Partido Trabalhista praticamente desapareceu e ela está numa posição dominante. Neste momento pode opor-se à vontade ao Daily Mail, mas provavelmente ela não pensa da mesma maneira. Ela é uma pessoa muito insegura, que não confia em mais ninguém a não ser os seus conselheiros mais próximos. Ela comporta-se como se tivesse pouca força política, mas eu creio que internamente está numa posição de força, mas não tenho certeza que ela o perceba.

Acha que ela é insegura. Muita gente diz apenas que ela é prudente, que gosta de ponderar muito as coisas antes de decidir e de controlar tudo à sua volta.
Não tenho dúvidas de que ela controla tudo. Mas ela não é pessoa de participar em seminários. Ela lê muito e de reflectir. Mas não é alguém que goste de debater e discutir os temas.

No artigo afirma que o Governo está muito confiante que tem bons trunfos em mãos. O ministro Boris Johnson chegou a acusar os que alertam para a dificuldade destas negociações de estarem a ser pessimistas.
Mais uma vez, eles querem parecer optimistas. É politicamente correcto ser optimista em relação ao “Brexit”. E quem fala de dificuldades é apelidado de não estar a ser patriota, de querer que o país se dê mal. Quem fala de oportunidades é recompensado pelas chefias. É neste atmosfera que vivemos hoje. Dizer que o Reino Unido tem muitos trunfos é algo que as pessoas gostam de fazer. Em meu entender os nossos trunfos são bastante fracos. A disponibilidade para continuarmos a cooperar nos domínios da segurança e defesa é um trunfo, mas não é muito forte e usado de forma errada pode ser contraproducente. Apesar disso, dá jeito a pessoas que pouco sabem sobre a UE dizer que o Reino Unido tem argumentos fortes nestas negociações.

Mas essa jogada depressa será descoberta. Dentro de meses isso ficará claro…
Sim, mas se houver uma ruptura nas negociações, o que é bem possível, não parta do princípio que os britânicos vão criticar o Governo, a forma como este processo foi conduzido ou assumir que foi um erro sair da UE. É tão mais fácil culpar os outros países, dizer “a Comissão nos lixou, os franceses bloquearam o processo, os alemães não cederam, o raio dos estrangeiros quiseram castigar-nos com um mau acordo, por isso temos de sair da EU sem acordo”. Culpar os outros países é sempre mais fácil e não acontece só com os britânicos.

Uma das coisas que mais surpreende é o pouco eco que as preocupações do sector financeiro, das empresas, dos agricultores têm tido junto do Governo. A primeira-ministra pode continuar tão surda à pressão destes sectores?
Sim, claramente pode. A City de Londres tem muito poder, no sentido em que tem muito dinheiro. Mas só tem poder político na medida em que políticos como o Tony Blair ou David Cameron lhe deram ouvidos, a respeitam ou concordam com ela. A Theresa May não gosta da City e por isso não tem poder sobre ela e o seu lobby não funciona com ela. A City vai perder muito, não imenso, mas muito, ninguém sabe exactamente quanto, com o “Brexit”, mas a primeira-ministra não está preocupada.

Estamos a falar de 10% do PIB britânico.
Não devemos exagerar. Os sectores não directamente relacionados com a área financeira, como os escritórios de advocacia, as empresas de gestão e consultadoria, representam 10% do PIB. Os serviços financeiros propriamente ditos rondam os 5 ou 6%. E o que irá perder-se se o acordo for mau para a City é, no máximo 10%, do valor total. Estamos a falar de 10% de 10%, o que dá 1%. A maioria dos serviços da City não serão afectado pelo “Brexit”. Muito destinam-se à Ásia e à América e muito do que se destina à Europa não vai ser afectado mesmo com o “Brexit”. O que pode deixar a City é uma parte da banca de investimento, algumas empresas de gestão de activos e ainda menos companhias seguradoras. A City vai sofrer um abalo, mas vai continuar a ser um dos maiores pólos financeiros do mundo no prazo de dez anos.

Mas e os exportadores, o sector agrícola?
A agricultura é menos de 1% do PIB, é economicamente irrelevante. Tudo o que o Governo disse até agora é que vai cobrir o financiamento europeu que estava previsto no orçamento europeu até 2020. Em minha opinião os agricultores vão ter problemas porque o preço dos acordos de comércio que o Governo quer assinar com os países terceiros vão abrir o mercado britânico. Mas politicamente ninguém quer saber deles, nem sequer os conservadores. A indústria tem uma voz mais forte, sobretudo a indústria automóvel que pode perder muito com o “Brexit”, mas é ainda muito cedo para saber porque tudo vai depender dos acordos tarifários que o Governo adoptar. A primeira-ministra está mais preocupada com a indústria automóvel do que com a City, apesar de ser economicamente menos importante, por isso será certamente uma prioridade do Governo nas negociações.