Com o toque do público
Um bom concerto de domingo dedicado à percussão, com ambiente informal e familiar, que pôs os espectadores a participar, e não apenas com os ouvidos.
"Venham, venham, que vai começar o concerto!..." Os miúdos não querem largar as percussões que podem experimentar no foyer. Há um ar de festa na Gulbenkian nesta tarde solarenga em Lisboa. "Então, não vêm?"
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"Venham, venham, que vai começar o concerto!..." Os miúdos não querem largar as percussões que podem experimentar no foyer. Há um ar de festa na Gulbenkian nesta tarde solarenga em Lisboa. "Então, não vêm?"
O maestro começou mais um dos Concertos de Domingo – com o título Festa da Percussão – falando brevemente da percussão e apresentando a primeira peça da tarde, a Cuban Overture, de George Gershwin. Esta abertura sinfónica brilhante foi escrita em 1932 (numa época de estrondoso sucesso de Gershwin), combinando ritmos cubanos e temas melódicos do compositor, com um conjunto de percussões (central nesta peça) que inclui maracas, bongós, clavas e reco-reco. A direcção clara, equilibrada e vivaz de Pedro Neves (um dos mais consistentes maestros portugueses da actualidade, diga-se) fez da obra uma apelativa abertura para este concerto colorido e diversificado. E a Orquestra Gulbenkian, descontraída mas não desconcentrada, tocou-a muito bem.
A ideia destes Concertos de Domingo é trazer miúdos e graúdos juntos aos concertos (a pensar em famílias), num ambiente informal (assim como os trajes dos músicos), com uma dimensão pedagógica, incluindo pequenas explicações das peças apresentadas. Também têm frequentemente uma dimensão “participativa”.
A surpresa desta vez é que o concerto não era “só” para ouvir. Claro que escutar música (com ouvidos de ouvir) é uma actividade em si mesmo complexa, rica, exigente e não apenas “passiva”. Mas desta vez havia mesmo um convite a fazer música, a produzir sons, a participar na criação e na performance.
A peça em estreia absoluta de Sara Carvalho, intitulada a2 (que a compositora explica com sentido de humor que “não se refere a uma autoestrada”), é na verdade uma peça “a dois”. E os dois são o vibrafone e... o público. Claro que há limites e perigos nestas obras “participativas” (a demagogia e o paternalismo são dois deles), mas a explicação simples dos gestos pelo maestro e a forma concebida pela compositora afastaram os perigos. E o jogo funcionou às mil maravilhas, com a cumplicidade dos ouvintes, agora feitos intérpretes. Aos sinais do maestro, os espectadores ajudaram a fazer viver a obra de Sara Carvalho emitindo sons combinados com a boca, assobiando levemente, esfregando as mãos ou amachucando um papel.
O efeito foi surpreendentemente bem conseguido na interligação com o vibrafone tocado por um grande percussionista da actualidade, Nuno Aroso, e com apontamentos “percutivos” da orquestra. Houve ainda outro momento “participativo”, com o público a fingir o som de chuva batendo com os dedos (e quase chegando à tempestade) em pequenos momentos na peça de Lei Liang, Trans, também interpretada por Nuno Aroso.
Pelo meio, Danzas de Estancia, do argentino Alberto Ginastera, uma obra cativante e não apenas superficialmente, numa linguagem da sua fase de “nacionalismo objectivo” (como lhe chamou o próprio Ginastera, compositor relevante do século passado). A orquestra pôde brilhar, aqui como no final (Huapango, de José Pablo Moncayo), e sobretudo o naipe que neste dia era a estrela da companhia: a percussão. Uma tarde bem passada, ou algo mais? O que é certo é que da sala quase cheia da Gulbenkian saíram muitos com um sorriso... e com um papel amachucado.