Entre a Holanda ocupada e a Turquia neutral, onde se situa o nazismo?
Os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO não têm dúvidas em afirmar que as acusações de Erdogan dirigidas à Holanda não fazem sentido do ponto de vista histórico. Não só pelo que os holandeses sofreram às mãos dos nazis, mas também pela relação ambígua entre turcos e alemães.
Durante as últimas semanas iniciou-se um conflito diplomático aberto entre a Turquia e a Holanda, com duras acusações de parte a parte. Em especial, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, resolveu reabrir uma ferida à qual muitas vezes se recorre quando as posições entre duas nações, em especial europeias, se antagonizam de forma especialmente extrema – o nazismo. Apesar disso, as acusações de ligação ao nazismo contra os holandeses não são algo que se oiça todos os dias. E assim é porque, talvez, seja a própria história a contradizer estas acusações. De um país ocupado pela Alemanha nazi, e que viu uma das suas maiores cidades, Roterdão, completamente arrasada e a sua população judaica praticamente dizimada, é de surpreender que exista alguma simpatia por parte da Holanda pelo nacional-socialismo que guiou Adolf Hitler e o seu círculo mais próximo.
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Durante as últimas semanas iniciou-se um conflito diplomático aberto entre a Turquia e a Holanda, com duras acusações de parte a parte. Em especial, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, resolveu reabrir uma ferida à qual muitas vezes se recorre quando as posições entre duas nações, em especial europeias, se antagonizam de forma especialmente extrema – o nazismo. Apesar disso, as acusações de ligação ao nazismo contra os holandeses não são algo que se oiça todos os dias. E assim é porque, talvez, seja a própria história a contradizer estas acusações. De um país ocupado pela Alemanha nazi, e que viu uma das suas maiores cidades, Roterdão, completamente arrasada e a sua população judaica praticamente dizimada, é de surpreender que exista alguma simpatia por parte da Holanda pelo nacional-socialismo que guiou Adolf Hitler e o seu círculo mais próximo.
Se o posicionamento da Holanda durante o período nazi e o avanço dos exércitos da Alemanha pela Europa são óbvios e conhecidos, o da Turquia foi, durante as últimas décadas, alvo de estudo, discussão e teorias contraditórias.
Na grande maioria das vezes em que se utilizam as comparações com o nazismo – recentemente aconteceu com Donald Trump, Marine Le Pen, a Holanda ou Angela Merkel – o fundamento histórico é praticamente, ou totalmente, inexistente. Já em 1990, como conta a BBC, o advogado americano Mike Godwin lançava aquela que viria a tornar-se conhecida como a “Lei de Godwin”: se uma discussão online tiver uma determinada duração, mais cedo ou mais tarde vai surgir uma comparação com Hitler - o reductio ad Hitlerum. O que talvez nunca tenha passado pela cabeça do advogado norte-americano é que a sua “lei” viria a ser aplicada nas relações internacionais.
O diferendo entre a Turquia e a Holanda parece respeitar a regra descrita por Mike Godwin. O politólogo e investigador António Costa Pinto diz ao PÚBLICO que as acusações dirigidas à Holanda “não têm qualquer sentido”, acrescentando que Erdogan “escolheu mal o país” para levantar este tipo de considerações, até porque “há outros europeus que têm um passado mais complexo”.
Também Bruno Reis, investigador do Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa, considera que “é sempre de desconfiar quando políticos utilizam este tipo de analogias”, descrevendo as declarações de Ancara como “um abuso de tal maneira absurdo que realmente parece ter uma intenção de provocação que pode ser explicável pela política interna turca”.
A Holanda ocupada e arrasada
Quando, a 1 de Setembro de 1939, os exércitos do Terceiro Reich entraram na Polónia dando início das hostilidades na Europa, a Holanda manteve-se numa posição de neutralidade. O problema é que a blitzkrieg de Hitler avançaria por grande parte do continente europeu em poucos meses. E assim, a 10 de Maio de 1940, a Holanda enfrentou uma invasão célere, intensa e brutal por parte das tropas alemãs. Quatro dias depois, a 14 de Maio, os nazis exigiram a rendição de Roterdão, cujo porto despertava grande interesse estratégico. Perante a hesitação holandesa, os bombardeiros da temível força aérea alemã, a Luftwaffe, preparam-se para a missão. E, já depois de Roterdão ter sido entregue à Alemanha, a cidade foi completamente arrasada pelos bombardeamentos – este viria a ser um dos crimes de guerra pelos quais os dirigentes nazis viriam a ser julgados depois do final da II Guerra Mundial. No dia seguinte, a 15 de Maio, a Holanda apresentava a sua rendição total. Cinco dias foi o tempo que durou a resistência holandesa ao avanço nazi.
Perante a queda do país, o Governo e a família real holandesa recusaram-se a render, partiram para Londres, estabelecendo-se como Governo no exílio, e as instituições democráticas foram desmanteladas pelos nazis. Bruno Reis relembra ainda a cor utilizada como símbolo do movimento de resistência e que “irritava os nazis” e que era também a cor da realeza holandesa: o laranja.
Os nazis entregaram algumas posições-chave da administração do país ao pequeno partido nacional-socialista holandêscomo recompensa pelo seu apoio. Sobre isto, Costa Pinto explica que, de facto, existia “um pequeno partido nacionalista holandês” mas “que nunca passou dos 3% em termos eleitorais”. Com a chegada dos exércitos nazis, a organização “obviamente tentava encontrar um lugar ao sol”. Apesar disso, o politólogo acrescenta que a Holanda ocupada não só “tem uma atitude pró-aliada de uma parte significativa da sua elite”, como “não tem sequer um regime colaboracionista pró-nazi” como se verificou nos casos da Eslováquia, da França de Vichy ou da Croácia. Por isso, na prática, e apesar de uma “colaboração de alguns segmentos da administração”, a “Alemanha faz praticamente uma administração directa” no território ocupado. Também Bruno Reis explica que “em boa parte da Europa existiam movimentos políticos com algumas simpatias com o nazismo. Mas eram minoritários”. Ou seja, dificilmente se podia acusar os holandeses de colaboracionismo e de nazismo.
Se no período imediatamente seguinte à invasão a vida dos holandeses regressou a uma aparente normalidade, a verdade é que meses depois a opressão nazi fez-se sentir. E o alvo preferencial, tal como em toda a Europa, foram os judeus. Os passos dados foram semelhantes aos de muitos outros locais: no Inverno de 1940, todos os cerca de 140 mil judeus (muitos dos quais tinham fugido da Alemanha, o que se provou mais tarde ter sido uma decisão errada) que viviam na Holanda foram forçados a registarem-se como tal e foi desenhado um mapa indicando onde é que cada um deles vivia. Por esta altura, os bilhetes de identidade dos judeus estavam marcados com um “J” e a famosa estrela de David já era visível nas roupas. Gradualmente, a população judaica foi sendo proibida de entrar em espaços públicos (bares, lojas, parques ou transportes públicos) e, depois, deportada em massa para os campos de concentração. Calcula-se que, em 1945, no final da guerra, apenas cerca de 35 mil judeus residentes na Holanda tinham sobrevivido aos crimes nazis.
Durante a ocupação, a população holandesa foi formando uma resistência subversiva às forças de ocupação. Muita da actuação desta resistência era passiva – proteger e esconder os judeus perseguidos. E esse era um crime cuja pena era a morte. “A Holanda, na sua estrutura de resistência, não difere muito de outros países europeus, no sentido em que a resistência é progressivamente dominada por uma oposição liberal democrática e também por uma oposição comunista”, explica António Costa Pinto. No entanto, “uma parte da administração holandesa colabora” com os nazis, o que se verificou ser “um grande problema no caso dos judeus”, realça. Estes colaboracionistas holandeses foram mais tarde violentamente punidos pelos membros da resistência.
No final da guerra, a Holanda era, do conjunto dos países ocupados, aquele com maior taxa de mortalidade relacionada relacionado com conflito. Mais de 205 mil holandeses morreram, sendo que mais de metade foram vítimas do Holocausto.
A Turquia e o nazismo: do fascínio à relação "interesseira e estratégica"
Se no caso da Holanda a ocupação nazi está bem documentada, bem como os seus efeitos, a neutralidade turca durante a II Guerra Mundial é alvo de alguma discussão por parte dos historiadores e investigadores.
Ligada por uma aliança militar com o Império Britânico e com a França no início da guerra em 1939, a Turquia rapidamente passou a colocar-se numa posição de neutralidade na sequência da queda francesa às mãos dos alemães em 1940. Um ano depois, em 1941, a posição turca passou a ser de país neutro colaborante com ambas as partes, tendo assinado um pacto de não-agressão com a Alemanha.
A 18 de Junho desse ano, o pacto foi assinado em Ancara pelo embaixador alemão na Turquia, Franz von Papen, e pelo ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Sükrü Saracoglu, tendo ficado conhecido como o “Acordo Clodius”, baptizado com o nome do diplomata alemão responsável pelas negociações, Carl August Clodius.
O que está em causa na assinatura deste acordo, do ponto de vista da Turquia, é, explica Costa Pinto, “não perturbar a Alemanha no início da sua avançada a Leste sobre a União Soviética”. Ora, quatro dias depois da assinatura do pacto, começou a “Operação Barbarossa” – a invasão da União Soviética pelas forças germânicas –, algo relativamente surpreendente pois ainda estava em vigor o chamado pacto Molotov-Ribbentrop, o acordo de não agressão assinado entre a Alemanha e a União Soviética em 1939.
No entanto, “quando a luta pelo petróleo se tornou algo importante, muitos historiadores se interrogaram porque é que a Alemanha não vai directamente à fonte que é a Turquia naquela altura”, lembra o politólogo e investigador ouvido pelo PÚBLICO. Um dos factores que o pode explicar é a situação nos Balcãs: chamada a apoiar os exércitos italianos na região, que sofriam derrotas sucessivas, a Alemanha abre outra frente de batalha.
O investigador do Instituto de Ciências Sociais defende que “não deixa de ser irónico”, à luz da história, a acusação de Erdogan à Holanda. O acordo assinado mostra, na opinião de Bruno Reis, por um lado que “não há ali uma hostilidade, à partida, com o regime nazi” e, por outro, houve uma “preocupação de aproximação às potências dominantes naquela região sem nunca ceder plenamente a autonomia turca”.
Mas os interesses comerciais também foram um forte componente que esteve na base das relações germânico-turcas. Para além de importantes empresas e bancos alemães que tinham filiais em território turco, as exportações turcas do minério de cromita para a Alemanha foi um fundamental no apoio ao esforço de guerra germânico. Este minério é utilizado para o fabrico de material refractário, vidro, cimento e para a obtenção do crómio metálico – segundo alguns cálculos foram exportadas 45 mil toneladas entre 1941 e 1942 e entre 1943 e 1944 o número aumentou para as 90 mil toneladas. A Turquia, com algumas semelhanças com a neutralidade portuguesa, tentava balançar e equilibrar a sua relação com as potências do Eixo e com os Aliados.
Este pacto, que tinha duração prevista de dez anos, começou a perder força ao mesmo tempo que a derrota germânica era um cenário cada vez mais previsível. As trocas comerciais terminaram semanas antes (no dia 26 de Maio) de os exércitos aliados pisarem as praias da Normandia, a 6 de Junho de 1944. Dias depois, o ministro dos Negócios Estrangeiros turco que assinou o Acordo Clodius, e que era assumidamente um simpatizante do regime nazi, demite-se. A 23 de Fevereiro de 1945, a Turquia declara guerra à Alemanha, mas não chega a ter necessidade de recorrer às armas – no dia 8 de Maio, pouco mais de dois meses depois, a Alemanha apresentava a sua rendição e o conflito na Europa terminava.
“A gestão turca é toda muito interesseira ou estratégica e portanto tem essas oscilações”, defende Reis. “A Turquia faz esta gestão completamente pragmática em função dos seus interesses – que era manter-se fora da guerra, ganhar o máximo de apoio a nível de equipamento militar e ganhar o máximo de divisas em termos de vendas. Essa oscilação é muito maior em paralelismo do que no caso português” acrescenta o investigador.
O fascínio dos nazis por Atatürk
Bruno Reis identifica ainda algo que aproxima a Turquia e a Alemanha e que tem lugar ainda antes do início da II Guerra Mundial. O fascínio dos nazis pelo fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk. “Atatürk era uma referência de Hitler e o genocídio dos arménios durante a I Guerra foi uma referência importante para os nazis”, diz, reforçando que existia, no início do movimento nazi, a “ideia de que a Turquia era um modelo de um Estado nacional e racial”. Além disso, “no período anterior, nos anos 30 e nos anos 20, o movimento nazi apresentava a Turquia de Atatürk como um exemplo de uma potência que tinha resistido aos Aliados”, referindo-se aqui à aliança da Turquia com a Alemanha durante a I Guerra Mundial e a recusa dos acordos que os britânicos procuravam.
Outro dos aspectos que marcaram as circunstâncias da Europa em guerra foi o fluxo de refugiados judeus que fugiam à tirania nazi. E aqui, tal como na actualidade, a Turquia teve um papel, até certo ponto, com algumas semelhanças em relação ao Portugal do Estado Novo, neutro durante o conflito, tal como identifica a investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Irene Pimentel. A historiadora recorre ainda à estudiosa alemã Corry Guttstadt, autora do estudo de 520 páginas Turquia, Judeus e o Holocausto, para denunciar uma certa “mistificação do papel da Turquia em relação aos judeus”. No fundo, como afirmou Guttstadt numa entrevista ao site alemão Qantara, “representar o Império Otomano como um ‘paraíso multicultural’ é absurdo”, disse a especialista alemã. “Como não-muçulmanos, os judeus foram sujeitos a incontáveis constrangimentos. Como os cristãos, tinham de pagar um imposto e eram obrigados a comportar-se de forma submissa em relação aos muçulmanos”, acrescenta na mesma entrevista.
“Há uma mitificação e uma mitologia” sobre o posicionamento da Turquia em relação aos refugiados judeus, diz Pimentel ao PÚBLICO, e “só nos últimos tempos é que se começou a estudar” esta relação, nomeadamente através de Guttstadt. E o que se pode concluir desta investigação é que Ancara “fechou as portas” aos refugiados, “muito mais até do que Portugal”, diz a investigadora, acrescentando que foram até expulsos judeus turcos. Irene Pimentel recorda ainda uma espécie de “passaporte secreto especial” criado pelos turcos, em colaboração com os germânicos, com uma marca “para distinguir os judeus com os outros”. “Isso até era muito parecido com o que a Suíça neutral propôs à Alemanha” – neste caso era colocado um “J” nos passaportes judaicos tal como se fez na Holanda ocupada. Também a teoria, defendida por alguns historiadores, de que os diplomatas turcos concederam vistos de forma a salvar os judeus de nacionalidade turca é contestada. Pelo menos, o facto de o terem feito por razões humanitárias e não por terem simplesmente respeitado as regras que lhe haviam sido impostas por Ancara.
Bruno Reis, por seu turno, defende que a “Turquia nunca viu a comunidade judaica com hostilidade”, tendo existido, inclusivamente, uma “relação próxima com o Estado de Israel”. “A Turquia foi, a par de Portugal, um ponto muito importante de fuga ilegal dos refugiados judeus a partir da Europa”, realça Reis. Mas isto, realça, “até os alemães chegarem à fronteira turca e imporem limites”.
O que sustenta então as acusações de Erdogan?
Se do ponto de vista histórico as acusações de Erdogan têm pouco ou nenhum fundamento, o que as justificam? Costa Pinto analisa que “este novo autoritarismo turco é um produto da democratização da Turquia – que tem, ao longo da história, fases autoritárias, intervalos liberalizantes e fases autoritárias. Mas este partido [de Erdogan] é um partido hegemónico sob o ponto de vista eleitoral e islâmico, que aponta para a islamização da Turquia”. Este é também um discurso “ideológico-religioso mais propício a utilizar modelos culturais nas relações internacionais. Ou pelo menos de legitimação cultural”, defende António Costa Pinto.
“A gestão e as relações com a Europa por parte da Turquia é sempre muito pragmática e portanto o discurso ideológico é claramente uma retórica eleitoralista por parte do líder turco. O que interessa é conseguir resultados e o máximo retorno dessa relação”, conclui, por sua vez, Bruno Reis. A posição turca durante o conflito mais sangrento da história da humanidade “mostra claramente que não houve por parte da Turquia um comportamento de tal forma exemplar que permita agora fazer o tipo de análise” exposta por Erdogan. “Não se justifica este tipo de discurso por qualquer tipo de comportamento exemplar da Turquia no passado”, refere ainda Bruno Reis.