Coreia do Norte dirige operação de armas a partir da Malásia, diz a ONU

Relatório expõe operação de empresa com sede em Kuala Lumpur, em violação do regime de sanções aplicado pela comunidade internacional contra o regime de Pyongyang.

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PETAR KUJUNDZIC/REUTERS

É no bairro “Little India” de Kuala Lumpur, atrás de uma porta sem nome no segundo andar de um prédio degradado, que uma empresa de equipamento militar chamada Glocom alega ter a sua sede. A Glocom é uma empresa fantasma dirigida por agentes de espionagem da Coreia do Norte que vende equipamentos de rádio para o campo de batalha, o que representa uma violação das sanções das Nações Unidas, segundo um relatório submetido ao Conselho de Segurança a que a Reuters teve acesso.

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É no bairro “Little India” de Kuala Lumpur, atrás de uma porta sem nome no segundo andar de um prédio degradado, que uma empresa de equipamento militar chamada Glocom alega ter a sua sede. A Glocom é uma empresa fantasma dirigida por agentes de espionagem da Coreia do Norte que vende equipamentos de rádio para o campo de batalha, o que representa uma violação das sanções das Nações Unidas, segundo um relatório submetido ao Conselho de Segurança a que a Reuters teve acesso.

A Reuters descobriu que a Glocom faz publicidade a mais de 30 sistemas de rádio para organizações “militares e paramilitares” no seu website malaio, glocom.com.my.

O website malaio da Glocom, que foi encerrado no final do ano passado, apresentava a morada do bairro “Little India” na sua secção de contactos. Ninguém abre a porta e a caixa de correio está cheia de cartas que não foram abertas.

Na verdade, não existe nenhuma empresa com esse nome na Malásia. No entanto, foram duas empresas malaias controladas por accionistas e directores norte-coreanos que registaram o site da Glocom em 2009, de acordo com documentos de registo relativos ao website e à empresa.

O documento da ONU, que não foi divulgado, afirma que o website também faz negócios. No passado mês de Julho, um carregamento aéreo de equipamentos de comunicação militares norte-coreanos, enviado da China com destino à Eritreia, foi interceptado num país anónimo. O equipamento apreendido incluía 45 caixas de rádios e acessórios para o campo de batalha com a marca “Glocom”, um acrónimo de Global Comunications Co.

A Glocom é controlada pela Agência Geral de Reconhecimento, a agência de espionagem norte-coreana responsável por operações internacionais e aquisição de armas, afirma o relatório, citando informação confidencial que obteve.

Um porta-voz da missão da Coreia do Norte nas Nações Unidas disse à Reuters que não tinha nenhuma informação sobre a Glocom.

A resolução 1874 do Conselho de Segurança da ONU, adoptada em 2009, alargou o regime das sanções económicas e comerciais contra a Coreia do Norte: o embargo às armas passou a incluir equipamento militar e todo o “material relacionado".

Contudo, o relatório da ONU diz que a implementação de sanções “continua a ser insuficiente e altamente inconsistente” entre os países membros e que a Coreia do Norte usa “técnicas de evasão que estão a aumentar em termos de escala, de alcance e de sofisticação.”

A Malásia era um dos poucos países do mundo que mantinha laços fortes com a Coreia do Norte. Os cidadãos de ambos podem viajar entre os dois países sem precisar de visto. Mas estes laços começaram a deteriorar-se depois de o irmão ostracizado de Kim Jong Un, o líder da Coreia do Norte, ter sido assassinado no aeroporto internacional de Kuala Lumpur no dia 13 de Fevereiro.

Pan Systems

De acordo com a base de dados “WHOIS”, que revela os proprietários de páginas de Internet, o domínio Glocom.com.my foi registado em 2009 por uma entidade chamada International Global Systems, usando a morada do “Little India”. Uma empresa com um nome semelhante, International Golden Services, está registada como ponto de contacto na página da Glocom.

A Glocom registou um novo website, glocom-corp.com, em meados de Dezembro, e este não apresenta quaisquer contactos na Malásia. A sua publicação mais recente data de Janeiro de 2017 e faz publicidade a novos produtos, incluindo um sistema de controlo remoto para um míssil guiado com precisão.

A Glocom é dirigida pelo ramo de Pyongyang de uma companhia sediada em Singapura chamada Pan Systems, revela o relatório da ONU, citando uma factura e outra informação que obteve.

Louis Low, director-geral da Pan Systems em Singapura, disse que teve um escritório em Pyongyang a partir de 1996, mas que rompeu oficialmente relações com a Coreia do Norte em 2010 e já não controla nenhuns negócios no país.

“Eles usam (o nome) Pan Systems e dizem que se trata de uma empresa estrangeira, mas fazem tudo sozinhos,” disse Low à Reuters, referindo-se aos norte-coreanos do escritório de Pyongyang.

A Pan Systems Pyongyang utilizou contas bancárias, empresas fantasma e agentes baseados principalmente na China e na Malásia para comprar componentes e vender sistemas de rádio completos, afirma o relatório da ONU. Não foi possível contactar a Pan Systems Pyongyang para fazer um comentário.

Uma das directoras da Pan Systems Pyongyang é Ryang Su Nyo. De acordo com uma fonte com conhecimento directo do seu passado, Ryang responde perante o “Gabinete de Ligação 519”, um departamento da Agência Geral de Reconhecimento. Ryang também aparece como uma das accionistas da Internactional Global System, a empresa que registou o website da Glocom.

A Reuters não conseguiu contactar Ryang.

Contrabando de dinheiro

Ryang viajava frequentemente para Singapura e para a Malásia para se reunir com representantes da Pan Systems, afirma o relatório da ONU.

Numa dessas viagens, em Fevereiro de 2014, ela e mais dois norte-coreanos foram detidos na Malásia pela tentativa de fazer passar 450 mil dólares em dinheiro pela alfândega no terminal do aeroporto de Kuala Lupur, contaram à Reuters duas fontes com conhecimento directo da situação.

O trio norte-coreano disse às autoridades malaias que trabalhavam todos para a Pan Systems e que o dinheiro pertencia à embaixada norte-coreana em Kuala Lumpur, segundo estas duas fontes.

O Procurador-Geral da Malásia decidiu não apresentar queixa devido à falta de provas. Uma semana mais tarde, o trio recebeu autorização para viajar e a embaixada norte-coreana reclamou o dinheiro, revelaram as fontes. Segundo as mesmas, os três tinham passaportes de membros do Governo.

O Departamento Alfandegário da Malásia e o Procurador-Geral não responderam aos pedidos de comentário da Reuters.

A ONU diz que o representante da Pan Systems em Kuala Lumpur é um norte-coreano chamado Kim Chang Hyok.

Kim, que também se apresenta como James Kim, foi o director fundador da International Golden Services, a empresa que aparece na secção de contactos do website da Glocom. Kim é director e accionista de quatro outras empresas na Malásia que operam nas áreas da informática e do comércio, de acordo com o registo de empresas malaio.

Kim não respondeu a pedidos para comentar através de correio e de email.

O painel das Nações Unidas que preparou o projecto de relatório, perguntou ao Governo malaio se este iria expulsar Kim e congelar os activos da International Golden Services e da International Global System, de forma a obedecer às sanções da ONU. A organização não revelou quando é que este pedido foi feito. “O painel ainda não obteve resposta,” afirma o relatório.

A Reuters não obteve nenhuma resposta do Governo da Malásia a pedidos repetidos para prestar esclarecimentos sobre a Glocom.

Ligação política

Um dos primeiros parceiros da Glocom na Malásia foi Mustapha Ya’akub, um membro proeminente da Organização Nacional de Malaios Unidos (UMNO). Desde 2014 que este era apresentado como o director da International Golden Services. Enquanto era secretário da agência de negócios internacionais da ala jovem da UMNO, Mustapha desenvolveu ligações políticas ao longo da década de 1990 com países como o Irão, a Líbia e a Coreia do Norte. A morada no “Little India” da Glocom costumava ser ocupada por uma empresa pertencente à Juventude da UMNO.

Mustapha, de 67 anos, disse que tinha sido parceiro da Glocom “há muitos anos” e que esta tem sido continuamente controlada por vários norte-coreanos, incluindo Kim Chang Hyok, que afirmou conhecer. Mustapha não revelou o seu papel na empresa e negou ter conhecimento dos negócios actuais da Glocom.

A Glocom faz publicidade e exibe os seus produtos sem revelar as suas ligações à Coreia do Norte.

“Em qualquer lugar, a qualquer momento no campo de batalha”, diz o slogan presente em vários catálogos de 2017 da Glocom obtidos pela Reuters. Um anúncio na edição de Setembro de 2012 da Asian Military Review dizia que a Glocom desenvolve rádios e equipamento para “organizações militares e paramilitares”. Um porta-voz da revista confirmou que o anúncio tinha sido comprado pela Glocom, mas disse que não tinha conhecimento das alegadas ligações desta à Coreia do Norte.

Segundo o seu site, a Glocom realizou mostras pelo menos três vezes desde 2006 na exposição bienal de armas Defence Service Asia (DSA), na Malásia. Na DSA 2016, a Glocom pagou 2000 ringgit (cerca de 450 dólares ou 420 euros) para partilhar uma mesa no expositor da Integrated Securities Corporation da Malásia, contou à Reuters o seu director, Hassan Masri, por email. Hassan disse que não tinha nada a ver com o equipamento da Glocom e que não tinha conhecimento das suas alegadas ligações à Coreia do Norte.

Além dos norte-coreanos que estão por trás da Glocom, há mais indícios no site da empresa que apontam para as suas origens norte-coreanas. Por exemplo, uma fotografia sem data mostra um operário a testar um sistema de rádio da Glocom. Ao lado, uma placa revela que a máquina que está a utilizar venceu um prémio que é exclusivo da Coreia do Norte: “O Prémio Máquina Modelo nº26”, baptizado em honra do falecido líder Kim Jong Il, que se diz ter operado de maneira eficiente o “Torno Mecânico nº26” na Fábrica de Têxteis de Pyongyang quando era estudante.

Com Nicole Nee (Singapura), Michelle Price (Hong Kong) e Ned Parker (Nova Iorque). Reuters