A vingança de Aquarius sobre a realidade política brasileira

Estreou no Brasil a 1 de Setembro, um dia depois do processo de impeachment ser concluído e Dilma Rousseff ser definitivamente afastada. Aquarius e a sua história de resistência foram recebidos como uma vingança do cinema sobre a realidade política brasileira, com um fim alternativo.

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O protesto em Cannes “selou” a recepção a Aquarius no Brasil. O filme foi debatido, criticado, apoiado antes mesmo de ser visto nos três meses que decorreram entre Cannes e a sua estreia Yves Herman/REUTERS

Aquarius não foi pensado como um comentário explícito sobre a turbulência política do Brasil, em que a Presidente Dilma Rousseff foi retirada do cargo num processo de impeachment polémico por um Congresso maioritariamente corrupto. Nem poderia: Aquarius foi escrito alguns anos antes e rodado entre Julho e Agosto de 2015.

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Aquarius não foi pensado como um comentário explícito sobre a turbulência política do Brasil, em que a Presidente Dilma Rousseff foi retirada do cargo num processo de impeachment polémico por um Congresso maioritariamente corrupto. Nem poderia: Aquarius foi escrito alguns anos antes e rodado entre Julho e Agosto de 2015.

Mas a realidade política acabou por colar-se ao filme, a ponto de este parecer premonitório. O próprio realizador comparou a personagem central do seu filme, Clara (Sónia Braga), com Dilma Rousseff. “São duas mulheres que estão sendo despejadas e precisam lidar com homens corruptos para tentar manter a casa onde vivem”, disse Kleber Mendonça Filho à Folha de São Paulo em 2016.

Ao Ípsilon, dirá que se limitou a captar tensões sociais que estão presentes na sociedade brasileira e que o filme surgiu num momento politico em que “tudo veio muito claramente à tona e estava todo o mundo muito ligado nisso”. Nunca saberemos se Aquarius teria tocado o nervo ou provocado tanto debate se o contexto político no Brasil fosse outro.

Tudo começou em Maio do ano passado, no Festival de Cannes, onde Aquarius foi o primeiro filme brasileiro em oito anos a disputar a Palma de Ouro. Na mesma semana em que o governo interino de Michel Temer entrou em funções e Dilma teve de abandonar o Palácio do Planalto, realizador e elenco de Aquarius empunharam cartazes no tapete vermelho da escadaria do Palácio dos Festivais que diziam: “Há um golpe em curso no Brasil”, "54.501.118 votos foram queimados”, "Misóginos, racistas e impostores como ministros” ou "O mundo não pode aceitar este governo ilegítimo”. O protesto ecoou na imprensa internacional e viralizou nas redes sociais brasileiras.

“Fizemos um protesto muito democrático, pacífico, tranquilo. Não consigo imaginar a possibilidade de não termos feito aquele protesto como cidadãos brasileiros que acreditam que a democracia é a melhor maneira de uma sociedade funcionar”, diz Kleber. “Não me arrependo de jeito nenhum. Se tivesse de fazer novamente, faria exactamente do mesmo jeito.”

O protesto em Cannes “selou” a recepção a Aquarius no Brasil. O filme foi intensamente debatido, criticado, apoiado antes mesmo de ser visto nos três meses que decorreram entre Cannes e a sua estreia nos cinemas brasileiros. Uma nova polémica parecia surgir a cada semana em torno do filme. Reinaldo Azevedo, colunista reaccionário da revista Veja, decretou que “o dever das pessoas de bem” seria “boicotar” Aquarius quando ele chegasse ao Brasil - frase que Kleber incluiria no cartaz do filme, juntamente com citações elogiosas de críticos de cinema.

Apesar de Aquarius ser visto como o candidato natural do Brasil a concorrer ao Óscar de melhor filme estrangeiro, até pela visibilidade internacional que estava a receber, rara no cinema brasileiro, uma comissão escolhida pelo governo escolheu um filme de que poucos tinham ouvido falar, Pequeno Segredo, um drama sentimental que não chegou às nomeações. Um dos membros da comissão do Óscar, Marcos Petrucelli, comentarista de cinema para a rádio CBN, do grupo Globo, atacara Kleber Mendonça Filho e Aquarius nas redes sociais sem ter visto o filme, classificando o protesto em Cannes como uma “vergonha”. Entre outros comentários hostis, insinuou que a equipa do filme tinha ido ao festival às custas do Estado “para tirar férias na Riviera Francesa” . O facto de Petrucelli não ter sido afastado da comissão, apesar de os seus comentários lançarem dúvidas sobre a sua idoneidade e imparcialidade, e a escolha de um outro filme para representar o Brasil foram vistos como uma retaliação política ao protesto da equipa de Aquarius em Cannes e as suas críticas ao novo governo. 

Às vésperas da sua estreia no Brasil, Aquarius recebeu do Ministério da Justiça a classificação etária mais restrita - proibido a menores de 18 anos - alegadamente por conter sexo, nudez e drogas. A medida pareceu exagerada, sobretudo quando comparada com outros filmes recentes que figuram sexo explícito. Depois de um intenso debate público, as autoridades brasileiras baixaram a classificação etária de Aquarius para 16 anos. O filme estreou no Brasil a 1 de Setembro, um dia depois do processo de impeachment ser concluído e Dilma ser definitivamente afastada. Aquarius e a sua história de resistência foram recebidos como uma catarse, quase como uma vingança do cinema sobre a realidade política brasileira - uma espécie de fim alternativo. Os cinemas encheram e as sessões terminavam frequentemente com espectadores aplaudindo de pé e gritando “Fora Temer!”. “As pessoas encontraram algum tipo de reflexo da vida do Brasil no filme”, diz Kleber. “Acho isso uma coisa belíssima.”