O muro que os migrantes mais temem é o próprio México
Trump está a apertar o controlo nas fronteiras, mas o grande desafio de quem tenta entrar na “terra prometida” pelos caminhos do Sul está ainda antes: nos perigos de atravessar o México.
É mais uma calma manhã em Las Patronas, uma pequena localidade no estado de Veracruz, no México. Cerca das 11h, o silêncio é cortado pelo apito de um comboio de carga e, perto da linha, começam a surgir mulheres com sacos, estendendo os braços para tentar chegar às pessoas que, entretanto, começam a revelar-se.
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É mais uma calma manhã em Las Patronas, uma pequena localidade no estado de Veracruz, no México. Cerca das 11h, o silêncio é cortado pelo apito de um comboio de carga e, perto da linha, começam a surgir mulheres com sacos, estendendo os braços para tentar chegar às pessoas que, entretanto, começam a revelar-se.
O comboio é conhecido como La Bestia (A Besta) e estes são alguns dos quase 500 mil migrantes da América Central que, todos os anos, de acordo com um relatório da Cruz Vermelha, arriscam a vida para tentar atravessar o México numa longa e perigosa viagem com partida em países como a Guatemala, El Salvador, Honduras e Nicarágua.
Embarcar no La Bestia não é uma opção fácil, já que é grande o risco de cair das carruagens deste que também é conhecido como o "comboio da morte" – pode levar a ferimentos graves, amputações ou até mesmo à morte, para além da fome e do cansaço devido ao constante estado de alerta.
Estas mulheres, conhecidas como Las Patronas, são verdadeiras padroeiras que atenuam a crueza da viagem com a sua encomenda caída do céu: água, arroz, feijão e tortillas.
Las Patronas surgiram quando, em 1995, a jovem Norma Romero Vazquez e a sua irmã viram passar pela primeira vez La Bestia. “Madre, temos fome!”, gritavam-lhes as pessoas nas carruagens. Respondendo instintivamente ao apelo, as irmãs lançaram-lhes o que tinham nas mãos: o pão e o leite que traziam para o pequeno-almoço da família.
Chegadas a casa, ainda perturbadas, as mulheres da família Romero Vazquez decidiram organizar-se para ajudar as centenas de pessoas que diariamente tentam atravessar o México nos comboios de carga.
A história tornou-se conhecida e, ao longo de mais de 20 anos, o projecto cresceu e a iniciativa continua a reunir mulheres da localidade para, todos os dias, cozinhar e entregar cerca de 100 refeições aos migrantes, com o apoio de doações de mercados locais.
Em 2013, o trabalho deste grupo de mulheres inspiradoras foi reconhecido com o principal prémio de direitos humanos do México, atribuído pela Comissão Nacional de Direitos Humanos, e Las Patronas têm sido retratadas em vários documentários – como a curta-metragem "Como el viento", que reproduzimos aqui – que mostram o seu trabalho humanitário para atenuar um problema que parece não ter fim.
Purgatório
Muitas das pessoas que atravessam o México em busca do “sonho americano” vêm de países do chamado Triângulo Norte da América Central – Guatemala, El Salvador e Honduras. Fogem de cidades onde os níveis de violência se tornaram insuportáveis. Estes movimentos migratórios verificam-se desde a década de 80, alimentados pela sucessão de guerras civis e conflitos militares na região.
Os migrantes que atravessam o país – em comboios de carga, autocarros ou por outros percursos – estão sujeitos a condições de extremo risco, vendo-se obrigados a pagar a organizações criminosas para encetar a viagem. Um relatório de 2014 do Migration Policy Institute, um think tank de Washington dedicado ao estudo das migrações, descreve que, “a cada etapa da viagem, os migrantes são sujeitos a extorsão, roubo, violações e até homicídio, caso não paguem as taxas de ‘protecção’ definidas pelos gangues que controlam o percurso”.
“O muro que os migrantes mais temem é o México, não o muro de Trump”, afirma ao El País Mario Hernani, coordenador de um centro para imigrantes na cidade de Tecún Umán, na fronteira entre o México e a Guatemala.
Os cartéis de drogas estão entre as principais ameaças à segurança dos migrantes. O cartel dos Zetas, por exemplo, é responsável por alguns dos sequestros mais terríveis do México, como os massacres de 2010 e 2011 nos quais 265 migrantes foram raptados de autocarros, mortos e enterrados em valas comuns no estado de Tamaulipas, no Norte do país.
A hondurenha Lulu Sánchez, que abandonou o seu país em Janeiro deste ano para atravessar o México com a filha de 15 anos, que estava grávida, o filho de oito anos e dois vizinhos, conta ao jornal The Guardian a sua experiência traumática.
Na fronteira da Guatemala com o México, o grupo entrou num autocarro rumo a Tenosique, mas ao cair da noite o condutor mandou-os sair do veículo, afirmando que não tinham pago o suficiente para continuar a viagem. Ao fim de horas a caminhar sem rumo certo, o grupo foi apanhado por quatro homens com pistolas, que alegavam ser Zetas. Foram levados para uma quinta nas proximidades, onde foram despidos, revistados e espancados. Naquela noite, Lulu Sánchez foi violada por três homens, enquanto a filha grávida foi violentada por um quarto homem.
“Eles ameaçaram matar o meu filho e vender os seus órgãos, e disseram que conseguiriam bastante dinheiro com a minha filha”, afirmou Sánchez, que saiu das Honduras com todo o dinheiro que tinha: 30 dólares. A hondurenha e os filhos foram libertados depois de o seu irmão ter transferido 300 dólares para uma conta bancária no México para pagar o resgate.
Crimes como este são cometidos com a conivência da polícia – e, não raras vezes, os migrantes sofrem às mãos das próprias autoridades.
De acordo com a Rede de Documentação das Organizações Defensoras de Migrantes, que entrevistou 30 mil migrantes nos seus abrigos, 41% dos crimes cometidos contra estas pessoas em 2015 foram perpretados por agentes da polícia, seguindo-se os gangues organizados ou pequenos criminosos.
A guerra de Trump
Na semana passada, o secretário da Segurança Interna norte-americano, John Kelly, assinou dois memorandos com instruções para expandir as acções de detenção e deportação dos Estados Unidos de pessoas que Donald Trump descreveu ao longo da campanha como “criminosos”.
Enquanto Barack Obama deportou um recorde de 2,8 milhões de migrantes entre 2008 e 2016, com foco nas pessoas que tivessem sido condenadas por crimes graves, as novas ordens executivas de Trump colocaram sob risco de deportação praticamente qualquer imigrante indocumentado.
Essa, no entanto, é uma realidade que já existe no México há mais tempo. Em 2014, o país reforçou a sua operação para barrar a passagem de imigrantes vindos da América Central com o programa “Frontera Sur”, num esforço que contou com o apoio dos EUA para reduzir o número de migrantes ilegais e que fez aumentar o número de detenções e deportações no México.
Assim, enquanto em 2015 o governo norte-americano deportou 75 mil migrantes centro-americanos, o México enviou para os seus países de origem 166 mil pessoas, refere um relatório da organização International Crisis Group. Em 2016, de acordo com os números oficiais, foram 96 mil migrantes deportados pelos EUA, face a 147 mil pessoas expulsas pelo México.
Têm também chegado cada vez mais pedidos de asilo de refugiados da América Central. Em 2015, de acordo com os números do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), cerca de 110 mil pessoas pediram asilo para fugir da violência de países da Guatemala, El Salvador e Honduras. Destes, o México recebeu 3423 pedidos de asilo, 92% dos quais de El Salvador e das Honduras, relatou o porta-voz da ACNUR Adrian Edwards. Nos primeiros meses de 2016, de acordo com os dados da ONU, 1470 pessoas pediram asilo no México – mais do que em todo o ano de 2013.
A grande questão – ou, pelo menos, uma das mais pungentes – é por quanto tempo estes refugiados conseguem esperar pela resposta aos seus pedidos de asilo, sozinhos e cansados, num país de, desde o primeiro momento, se lhes mostrou hostil.