"O que fizemos era o que se podia fazer"
O governador do Banco de Portugal contesta os que consideram que o BdP poderia ter feito mais em relação a Ricardo Salgado e lembra que a legislação em vigor à data dos factos apenas lhe permitia retirar a idoneidade a quem estivesse condenado e com sentença transitada em julgado.
Uma reportagem da SIC passada na semana passada trouxe de volta a polémica em relação à actuação do Banco de Portugal no caso Grupo Espírito Santo e Banco Espírito Santo. Carlos Costa, em entrevista, defende-se das acusações e lembra que foi ele que, cara a cara, disse à família que não tinha idoneidade para estar à frente de uma instituição financeira.
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Uma reportagem da SIC passada na semana passada trouxe de volta a polémica em relação à actuação do Banco de Portugal no caso Grupo Espírito Santo e Banco Espírito Santo. Carlos Costa, em entrevista, defende-se das acusações e lembra que foi ele que, cara a cara, disse à família que não tinha idoneidade para estar à frente de uma instituição financeira.
Há documentos que não deu ao Parlamento durante actuação da comissão parlamentar de inquérito (CPI) ao Banco Espírito Santo (BES). Desde logo, um documento interno de 8 de Novembro de 2013 que lhe dizia que "uma actuação tempestiva não devia ser posta de lado” relativamente a Ricardo Salgado. Por que é que não os entregou?
São documentos de trabalho e, tal como foi transmitido à CPI, os documentos de trabalho não são abrangidos pelo dever de divulgação. O documento em causa faz parte de uma série de reflexões internas que se iniciaram por minha iniciativa em Fevereiro de 2013 a propósito de notícias publicadas na imprensa que visavam determinar se havia fundamentação para aquilo que era publicado e qual a gravidade dessas mesmas actuações. Entre Fevereiro de 2013 e Novembro muita coisa se passou e entre Novembro e Abril de 2014, quando o dr. Ricardo Salgado aceitou que não continuaria à frente do banco, também muita coisa se passou.
Não era um documento importante?
O que é importante dizer é que aquilo que o documento sugeria, que era prosseguir a reflexão, foi exactamente aquilo que foi feito: primeiro, prosseguir a reflexão sobre os factos que estavam a ser indiciados, segundo, confrontar as pessoas em causa com esses mesmos factos e, terceiro, construir a prova para depois em função da prova saber quais as consequências que se deviam retirar dessa prova. Isso foi feito, foi claramente transmitido à CPI.
A nota foi tida em boa conta, mas as averiguações posteriores levaram o Banco de Portugal a chegar à conclusão de que não havia razões para perda de idoneidade de Ricardo Salgado...
Não. Nada disso. A nota foi tida em devida conta e o que as averiguações posteriores permitiram concluir é que havia razões suficientes, primeiro, para não permitir a tomada de funções nos casos em que estavam pendentes pedidos de autorização. E, em segundo lugar, que havia razões suficientes, que ficaram consagradas em Abril de 2014, para exigir ao dr. Ricardo Salgado um plano de sucessão e exigir à família que se afastasse da gestão do BES. E isso está expresso em documentação que foi entregue na CPI.
Estamos a falar de uma nota interna do final de 2013, mas o processo de retirada de idoneidade só se concretizou mais tarde. Porquê?
O processo de avaliação de idoneidade começou em Fevereiro de 2013 com a recolha das informações que iam saindo na imprensa. Em Setembro, início de Outubro de 2013, iniciamos uma investigação sobre alguns administradores do Grupo Espírito Santo, porque era no domínio do grupo não financeiro que as questões se colocavam. Em terceiro, em 5 de Novembro de 2013, o Banco de Portugal questionou o dr. Ricardo Salgado tanto sobre o pagamento do sr. José Conceição Guilherme no ano de 2011 no montante de 8,5 milhões, como sobre a relação mantida com a Akoya. Esta carta foi respondida pelo dr. Ricardo Salgado no dia 21 de Novembro de 2013 e a partir daí iniciou-se um processo de correspondência, com sucessiva acumulação de informação que nos leva a que em 16/17 de Abril de 2014 o dr. Ricardo Salgado remetesse ao Banco de Portugal as cartas de renúncia aos cargos cujos registos se encontravam pendentes junto do Banco.
Mas porque não retiraram a idoneidade e tiveram de esperar pela renúncia?
Não podia por uma razão simples: do ponto de vista jurídico há dois acórdãos, o primeiro, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 2005 e o segundo pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 2012, e depois um terceiro acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, já depois da resolução, em 23 de Setembro de 2015, que diziam claramente que a retirada da idoneidade dependia da existência de prévias condenações judiciais. E as condenações judiciais não bastava que tivessem sido proferidas, era necessário que tivessem transitado em julgado.
Mas em Abril seguinte Ricardo Salgado também não tinha essa condenação.
O que significa pura e simplesmente que no contexto de uma hipotética renovação de mandato ele tinha ficado convencido, e foi persuadido, de que não teria condições para ser renovado o registo.
Dava para não renovar, mas não dava para retirar a idoneidade. É isso?
Exactamente.
O Banco de Portugal não tinha forma de retirar a idoneidade a um banqueiro, caso ele não tivesse sido condenado e a condenação não tivesse transitado em julgado?
Até 24 de Outubro de Outubro de 2014 era assim. E por isso foi muito útil a CPI. A partir de 24 de Outubro de 2014 passou a ser possível, porque entretanto foi alterada a lei, dando a possibilidade ao Banco de Portugal de intervir e retirar a idoneidade a alguém sobre o qual haja fundadas razões para duvidar da sua capacidade para prosseguir à frente de uma instituição. Em qualquer caso, mesmo nessa hipótese, pode sempre recorrer da decisão do Banco de Portugal. Mas uma coisa é tomarmos uma decisão num contexto, que era o contexto que havia até 24 de Outubro de 2014... Imaginem o que é tomar a iniciativa de criar uma perturbação numa instituição da dimensão de um banco, como o BES, se não tivéssemos a certeza e a garantia de que tínhamos o resultado pretendido. E por isso é muito importante a carta que o dr. Ricardo Salgado escreveu ao Banco de Portugal na época, a abdicar, no fundo, da possibilidade de pedir um novo registo.
Nesse caso, a nota interna do Banco de Portugal a defender que uma actuação tempestiva não devia ser posta de lado não estava correcta?
Não, não. O que estava correcto era o seguinte: uma actuação tempestiva significava continuar, prosseguir e aprofundar a recolha de elementos. Continuar, prosseguir em interrogatório e a interpelação das pessoas em causa, recolher o máximo de elementos e, depois, verificar como é que poderíamos, dentro do enquadramento legal existente, forçar o reconhecimento da falta de idoneidade. Podíamos fazer pressão e fizemos até ao ponto de as pessoas aceitarem apresentar um plano de sucessão e aceitarem que não fariam parte dos órgãos da administração e, mais, aceitarem que toda a família se afastaria da gestão do banco. E fizemos tudo no limite do que era permitido e mantendo uma grande pressão. Como imagina, em Outubro, Novembro de 2013 ou Janeiro de 2014, ter comigo a família Espírito Santo, como tive de uma vez, ou o dr. Ricardo Salgado, ou todos os outros e dizer-lhes, cara a cara, "os senhores não têm idoneidade para continuar à frente de uma instituição" foi uma grande novidade para os próprios e foi também um acto de grande afirmação da independência e da capacidade do Banco de Portugal para interpretar de forma estrita a lei. Só que a lei não permitia ir além de um certo ponto.
Estamos a falar de uma época em que muita coisa mudou muito rapidamente em Portugal. Foram pedidos sacrifícios. Pelo que nos diz, até à alteração legislativa de Outubro de 2014, estava de mãos atadas para retirar a idoneidade a um banqueiro. Fez pressão para que a lei fosse mudada? Quando é que fez pressão?
Fizemos. Teria de fazer o historial, mas uma alteração legislativa não nasce e se consuma no dia em que é aprovada. Nasce com muita antecedência e é objecto de reflexão interna, primeiro, e das entidades competentes, para demonstrar que havia necessidade de criar um quadro legislativo que desse ao supervisor poderes...
Neste período de 2013/2014, foi dando conta do que se passava ao Governo.
Certamente trocámos informações. E se o processo legislativo foi desencadeado, certamente é porque foi convincente a nossa argumentação. E a lei não acolheu totalmente a nossa intenção, mas dá-nos uma margem de manobra que não tínhamos de forma nenhuma naquela época.
A CPI concluiu (com uma maioria de direita) que a “intervenção do Banco de Portugal revelou-se porventura tardia, nomeadamente quanto à eliminação das fontes de potenciais conflitos de interesses, e pouco eficaz ao nível da determinação e garantia de cumprimento das medidas de blindagem impostas ao BES”. É justa a conclusão? À distância, não acha que actuou tarde de mais?
Primeiro: onde estava a lei que permitia impedir o financiamento de partes relacionadas? Segundo: onde havia informação suficiente e conclusiva que nos permitisse dizer que estávamos perante o que veio a acontecer depois? Terceiro: o que veio a acontecer depois não tem que ver com a natureza da tomada de risco de crédito, é uma conjugação de factores. Há factores comuns ao sistema bancário, que resultam da crise, e outros específicos, que resultam da relação com a área não financeira – e ainda outros que resultam de comportamentos internos do banco.
Posso concluir que não acha justa?
Invertia a questão: gostaria muito de ter [tido] naquela altura um quadro legal que tivesse impedido a acumulação de uma exposição a entidades relacionadas, gostaria muito de ter um quadro de governação que permitisse às diferentes entidades da validação de contas uma maior continuidade de acompanhamento. Se tudo isto funcionasse perfeitamente, nunca haveria possibilidade de haver surpresas.
Mudaria alguma coisa do que fez?
Necessariamente, com o conhecimento que se tem depois, seria muito mais... não diria mais agressivo, porque a lei não me permitiria. Mas teria pelo menos uma angústia muito superior, porque estaria limitado pela lei...
Mas não poderia fazer mais?
O que fizemos era o que se podia fazer, numa avaliação justa sobre a informação que tínhamos disponível, com o bom senso que exigia a situação. É muito fácil hoje, com a informação que temos, fazer juízo sobre aquela época. Agora, quantos comentadores me censuraram pelo facto de não ter autorizado um sucessor do dr. Ricardo Salgado a assumir as funções? Quantos?