A vida em suspenso dos imigrantes à espera da regularização

Trabalham, descontam para a Segurança Social. Já pediram autorização de residência ao SEF. Não têm direitos, mas têm deveres. Parlamento vai discutir em breve soluções para imigração irregular.

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Há uma palavra que os imigrantes que estão a fazer pedido de autorização de residência ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) sabem dizer. Venham de onde vierem, conheçam ou não a língua portuguesa: “Marcação”, por causa da entrevista que esperam, às vezes há quase dois anos, para finalmente entregarem os documentos e conseguirem avanço no processo com um “aprovado” final à vista.     

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Há uma palavra que os imigrantes que estão a fazer pedido de autorização de residência ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) sabem dizer. Venham de onde vierem, conheçam ou não a língua portuguesa: “Marcação”, por causa da entrevista que esperam, às vezes há quase dois anos, para finalmente entregarem os documentos e conseguirem avanço no processo com um “aprovado” final à vista.     

“Marcação” significa estarem mais próximo do cartão que lhes abrirá as portas do mercado de trabalho, ter conta no banco, inscreverem-se na escola, alugar uma casa, fazer um contrato com a operadora de telemóveis. Sem isso ficam sujeitos a condições de trabalho precárias, podem adoecer e não ter como pagar as contas do hospital, podem estudar um ano lectivo inteiro e no final ter sido em vão porque sem a autorização de residência não se pode passar o diploma ao aluno.

Amardeep Singh, indiano nascido em 1993, chegou a Portugal em Março de 2015, vindo de Itália, e fala em inglês mas também usa a palavra “marcação” em português. Desde Novembro de 2015 que está à espera. Começou a trabalhar numa empresa que fazia carregamentos no Mercado da Ribeira, em Lisboa. Recebia 200 euros por mês e tinha um horário das 5h da manhã às 12h e das 21h às 24h. Agora, no Algarve, onde apanha laranjas e recebe um ordenado de 530 euros, está dependente da autorização para muita coisa na sua vida. Como está enquadrado nos casos de quem quer exercer actividade profissional, tem contrato de trabalho e está inscrito na Segurança Social apresentou no SEF a manifestação de interesse ao abrigo do artigo 88 da Lei de Estrangeiros.     

Esse é o primeiro passo para se regularizar; o segundo é esperar que o SEF envie uma data de marcação. Ao telefone, Amardeep Singh explica que nunca teve “marcação”. “Não vejo a minha família há dois anos”, lamenta. Sem a autorização de residência, pode sair do país mas poderá não conseguir regressar.     

A descontar há vários anos

Amardeep Singh é um dos milhares que estão nesta situação. Oleh Maksymyuk, ucraniano, é outro exemplo. Aos 21 anos, fala seis línguas: ucraniano, russo, português, italiano, inglês e espanhol. Ao fim de quase três anos em Portugal, o seu português é impecável. Veio com a mãe, de 40 anos, trabalha desde que chegou num restaurante na zona dos Restauradores, em Lisboa - são cerca de 10h ou 12h por dia, para um salário de 650 euros, com um dia de folga e horário repartido.Tem descontos na Segurança Social desde 2015.

A 27 de Setembro de 2016 foi ao SEF e espera a conclusão do processo: disseram-lhe que era necessário esperar pela vistoria na empresa onde trabalha. Gostava de um dia, quando tiver a autorização, de ir trabalhar em hotelaria, o seu sonho. “Mudava agora, já”, diz. Ganha-se melhor. “É o tipo de trabalho que tem muito mais a ver comigo”. Gostava também de um dia pedir a nacionalidade e viajar livremente pela Europa.

As concessões de autorização de residência ao abrigo deste artigo 88 representam cerca de 20% do total de autorizações concedidas a 400 mil imigrantes residentes em Portugal, segundo dados do SEF. É a ele que recorre quem não conseguiu visto de trabalho antes de chegar. Desde Julho de 2007, altura em que entrou em vigor a Lei de Estrangeiros, que foram regularizados 80 mil imigrantes através deste artigo: a tendência tem sido decrescente, por exemplo, nestes primeiros meses houve 2558 concessões, segundo o SEF. As percentagens de aceitação destes casos são de 74%, segundo o SEF.

A questão é que entre a inscrição feita no portal do SEF — que funciona como uma triagem tendo o candidato de preencher requisitos — e a chamada para a “marcação” pode ir um longo período. Segundo o SEF, esse tempo médio é de quatro meses.     

“O prazo é o mais célere possível”  

Mas várias pessoas se queixam da espera. Aliás, neste momento o próprio SEF admite que as marcações do posto de Alverca, que trata de quase 80% dos agendamentos para o artigo 88 da Área Metropolitana de Lisboa, a zona onde se concentra a esmagadora maioria dos pedidos feitos através do artigo 88, estão suspensas. Isto por causa da transferência dos serviços de atendimento destes casos (cerca de 3 mil) para um andar do edifício do SEF na Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa. Muitos foram agendados com oito meses de distância. Não há data definitiva para abertura dos novos escritórios, embora o SEF espere que isso aconteça no final do mês.

Há atrasos que são suficientes para o imigrante ser despedido e perder a oprtunidade de se regularizar. A lei diz que os pedidos devem ser resolvidos num período de 90 dias; para as renovações são 60 dias. Passando esse prazo, “na falta de decisão”, “o pedido entende-se como deferido, sendo a emissão do título de residência imediata”. Mas raramente o SEF aplica esta alínea da lei, acusam o advogado Adriano Malalane e o presidente da associação Solidariedade Imigrante, Timóteo Macedo. “O tempo é muitas vezes uma forma encapotada de empurrar e expulsar as pessoas para fora do país”, diz o dirigente. Por seu lado, segundo o SEF, por se tratar de manifestações de interesse, não obedecem aos mesmos prazos - “o prazo é o mais célere possível”.  

Há ainda esperas de marcações de quase dois anos: como o caso de Amardeep Singh. Pertencerá a uma bolsa de cerca de três mil processos que foram admitidos sem se exigir o requisito de entrada regular em Portugal e que foram suspensos depois de um despacho assinado em Março de 2016 pela directora do SEF, Luísa Maia Gonçalves, a determinar que é “condição impreterível” o imigrante que se candidate ao abrigo do artigo 88 ter entrado regularmente em território nacional ou estar dentro do prazo do visto Schengen (90 dias). 

A excepção que foi anulada

É que este artigo 88 prevê a excepção da obrigatoriedade de um visto válido “mediante proposta do director nacional do SEF ou por iniciativa do membro do Governo responsável” - mas não dispensa a obrigatoriedade de entrada legal em Portugal, algo que um anterior despacho do SEF indicava. Mas, segundo as associações de imigrantes, a percentagem de quem entra regularmente é sempre pequena: muitas pessoas têm visto para um dos outros países do espaço Schengen e quando chegam a Portugal o visto já expirou - ou seja, a sua entrada é irregular. A versão do SEF é a de que “Portugal não pode ter uma plataforma de regularização”.

Mais tarde, em Julho, a directora do SEF decidiu analisar caso a caso, comprometendo-se a encontrar soluções. Deste bolo, faltam resolver cerca de 750 – a expectativa é que até final de Junho esteja fechado – e apenas um número irrelevante foi chumbado, segundo o SEF. “A permanência ser irregular não nos levanta problemas, o que levanta problema é quem não entrou regularmente. Todas as outras situações foram resolvidas”, diz fonte do SEF.

Este despacho foi altamente contestado por várias associações de imigrantes, que vieram para a rua manifestar-se, a última das quais em Novembro. Foi este despacho que deixou de fora cerca de 90% de pessoas que se querem regularizar, diz Timóteo Macedo, classificando-o como um “retrocesso numa altura em que se precisa de uma Europa solidária”.  

Mas não é apenas quem entrou em situação irregular que tem problemas em conseguir a residência. Mary Lane Tavares, brasileira, 53 anos, vive em Portugal consecutivamente desde 2005 e há anos que se tenta regularizar. Já passou por vários empregos, conta no salão de beleza num centro comercial da Amora (Seixal). Dificilmente conseguiu um contrato. Durante três anos trabalhou como empregada doméstica e descontou para a Segurança Social, mas nada pode fazer com esses descontos. Foram, na sua perspectiva, em vão. “Mais valia que me devolvessem o dinheiro”.

Chegou a ter uma empresa de salgados, passava recibos, pagava impostos, tentou legalizar-se como trabalhadora por conta própria, isto na altura em que a sua patroa fazia os seus descontos para a Segurança Social. Até colocou um patrão em tribunal por não lhe assinar nem contrato, nem lhe fazer os descontos para a Segurança Social – ganhou a acção. Agora está a pressionar, também com dificuldade, o patrão a fazer-lhe um contrato – algo que já tentou outras vezes, sem sucesso. “Digo a brincar que preciso é de ir trabalhar para um político, que esse precisa mesmo de me dar contrato”.  

Um “Estado dentro do Estado”

O artigo 88 é muitas vezes a única saída para quem entra em Portugal à procura de emprego sem visto de trabalho. O PCP apresentou esta sexta-feira um projecto de regularização de estrangeiros indocumentados, desde que tenham condições mínimas para assegurar “a sua subsistência, designadamente através do exercício de uma actividade profissional remunerada por conta própria ou de outrem” – quem entretanto ficou desempregado não deve ser penalizado, defende o partido. “O artigo 88 não é solução”, diz ao PÚBLICO o deputado António Filipe. “A lei é fechada e restrita” e o artigo 88 dá azo a uma grande margem de discricionariedade para que o SEF recuse o pedido, afirma. “Tem de haver critérios objectivos para que as pessoas que entram de forma irregular se possam regularizar”.

Também Adriano Malalane, advogado que trabalha há anos as questões da imigração, classifica a Lei dos Estrangeiros como “um imbróglio do ponto de vista jurídico”. “Estas pessoas que descontam para a Segurança Social, porque esse é um requisito para se pedir a autorização de residência, se tiverem um filho não têm direito a abono. Descontam, e não têm acesso ao Serviço Nacional de Saúde”, afirma o advogado. “A lei obriga as pessoas a descontar mas sem lhes dar qualquer direito”.

Timóteo Macedo acrescenta: “Há uma directiva europeia que diz que é proibido contratar pessoas em situação irregular. A lei portuguesa diz ‘contratem as pessoas que depois nós regularizamos’. Por isso, faz sentido haver apenas uma promessa de contrato de trabalho para se pedir a autorização de residência e não o contrário. O processo tem que ser claro, neste momento dar ou não dar a autorização está dependente do inspector que analisa o caso. Há casos em que se pedem às pessoas pelo menos seis meses de descontos da segurança social”.

Adriano Malalane critica: “O SEF é um Estado dentro do Estado”. Deixa em espera as pessoas durante meses. “Para ter uma ideia, se ligar para o SEF em Lisboa só tenho vaga em Agosto. E entretanto as pessoas ficam sem documentos. São apanhadas pela máquina”.

Por causa destas questões, a Solidariedade Imigrante lançou recentemente um manifesto assinado por mais de 60 personalidades, como o bispo Januário Torgal Ferreira, Mayra Andrade, Luísa Costa Gomes e Boaventura Sousa Santos, a pedir a aceleração do processo de legalização pelo SEF. Nesse documento, a associaçõ estima em "cerca de 30 mil" os "imigrantes que, apesar de plenamente integrados no mercado de trabalho e na sociedade portuguesa", em áreas que vão da agricultura ao trabalho doméstico, não têm autorização de residência.