“O PS fez grandes concessões” à esquerda radical
André Freire analisa e reflecte sobre o Governo e sobre a formação e funcionamento da aliança de esquerda. O politólogo reconhece que muito se deve ao perfil de António Costa, mas sublinha que houve cedências de todos: PS, BE, PCP e PEV.
Esta terça-feira é lançado, em Lisboa, o livro de André Freire Para lá da “Geringonça”, em que analisa as circunstâncias em que foi criada e o funcionamento da aliança política entre PS, BE, PCP e PEV que suportam parlamentarmente o Governo de António Costa. E faz também o paralelo com o resto da Europa. O livro é prefaciado pelo primeiro-ministro e será apresentado por Ana Catarina Mendonça Mendes, secretária-geral-adjunta do PS, e por Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE. O líder da bancada do PCP, João Oliveira, foi convidado mas não pôde aceitar por incompatibilidade de agenda.
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Esta terça-feira é lançado, em Lisboa, o livro de André Freire Para lá da “Geringonça”, em que analisa as circunstâncias em que foi criada e o funcionamento da aliança política entre PS, BE, PCP e PEV que suportam parlamentarmente o Governo de António Costa. E faz também o paralelo com o resto da Europa. O livro é prefaciado pelo primeiro-ministro e será apresentado por Ana Catarina Mendonça Mendes, secretária-geral-adjunta do PS, e por Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE. O líder da bancada do PCP, João Oliveira, foi convidado mas não pôde aceitar por incompatibilidade de agenda.
Da leitura do seu livro resulta que o sistema político estava enviesado à direita porque o PS sempre governou à direita. No PS, só António Costa podia fazer esta aliança?
Neste contexto, era a pessoa mais bem posicionada. Também não é - e eu documento - uma coisa que tenha surgido só no contexto das eleições de 2015. Há um lastro da sua intervenção na Câmara de Lisboa que demonstra essa abertura, essa vontade e essa capacidade de fazer compromissos e alianças.
No seu livro isso vem sinalizado logo com o acordo com Sá Fernandes.
Essa foi a primeira e era curiosa até porque era uma coligação minoritária. Se havia outros? Era capaz de haver. Manuel Alegre tentou isso da sua posição, mas Manuel Alegre nunca foi um executivo nem nunca quis ser líder. Era outro perfil. O Jorge Sampaio também ensaiou uma solução, deu a mão ao PCP talvez no período mais difícil, o do colapso da União Soviética. Essa aliança, aliás, durou bastante tempo na Câmara de Lisboa. E Mário Soares tem duas fases como a história, o período da Guerra Fria e o pós-Guerra Fria.
Escreve, num texto de 2013, que “dificilmente se compreenderia que a direita (...) fosse logo a seguir reciclada por um governo PS”, mas no day-after das legislativas escreve que era “puro engano” os que diziam “que Costa teria dado uma forte guinada à esquerda”. Mesmo sem dar guinada à esquerda, Costa foi a alternativa à política de direita?
Eu fui surpreendido, tal como as outras pessoas, com o que se passou a seguir às eleições, embora ache que houvesse sinais. O que quero dizer com isso é que o programa político-económico de António Costa, mas sobretudo o económico, que foi desenhado por economistas liderados por Mário Centeno - que está a fazer um óptimo trabalho, tirando aquela coisa da CGD -, era um programa muito centrista. Estimulava a economia cortando a TSU aos trabalhadores mais pobres, a recuperação de rendimentos era de meio-termo, entre a esquerda radical que queria imediatamente e o PSD que queria até ao fim da actual legislatura. O PS estava no meio, só este ano terminava a reposição. Por outro lado, António Costa não chegou overnight. Os sinais não foram avassaladores, mas houve-os. Onde Costa deu sinais de querer virar à esquerda foi na política dos entendimentos. Ele disse que queria dessacralizar a ideia do arco da governação, que estava disponível para entendimentos e que não queria governar para prosseguir as mesmas políticas. Mas não deu sinais de grande viragem à esquerda, nem o que está a fazer é, embora já seja resultado de compromissos com a esquerda radical.
Sem intervenção da troika teria sido possível a actual aliança?
Não sei, o que é certo é que ela ajudou. Mas não foi só a intervenção da troika, foi o que a direita fez da intervenção da troika. É preciso dizer que talvez fosse uma preferência da União Europeia ter continuado com PEC e sem intervenção directa. E vemos que, desde que foi reeleito, o Presidente da República, Cavaco Silva, deu o tiro de partida para o governo cair e o PSD tirar o apoio e, a partir daí, os juros e os ratings dispararem. Mas sobretudo o que a direita fez do Memorando foi ser muito severa e ir muito além da troika. Houve uma grande assimetria. Uma das coisas que caracterizou a última legislatura foi ser um embuste. Foram a votos dizer que iam fazer uma coisa, já com o programa da troika conhecido, e fizeram totalmente outra. Mas houve uma grande assimetria. O IRC foi descendo, enquanto os salários eram cortados. E nas PPP cortaram muito menos do que era suposto cortarem. Agora estamos a ver o tratamento fiscal dado aos offshores. O que é ideológico. O peso relativo do capital e do trabalho na riqueza nacional alterou-se substancialmente, atingimos o peso mais baixo do trabalho.
A disponibilidade da esquerda radical é a consequência de ter aprendido com a moção de censura a José Sócrates?
Há uma conjugação grande de factores. Essa pode ter sido uma aprendizagem.
Outro argumento que avança no seu livro é que a esquerda radical portuguesa não é tão radical quanto isso.
Não é muito radical, os outros é que já deixaram de ser sociais-democratas, na Europa também. Hoje em dia é que parece que já não se pode falar em repartir a riqueza entre o capital e o trabalho, mas isso é a social-democracia. Houve uma série de colunistas que aconselhavam a esquerda radical a não se meter nisto porque ia desaparecer. Há duas contra-provas de que isso também acontece se a extrema-esquerda não se entender com os socialistas. Uma é o mau resultado do BE em 2011, perdeu metade da bancada e não tinha estado no governo. E o próprio PCP vale metade do que valia nos anos setenta e oitenta e nunca esteve no governo. Portanto, a erosão da esquerda radical acontece dentro e fora. Por outro lado, também houve alguns sinais de concorrência interna na área do BE, o Livre - em que estive envolvido - e a cisão do grupo da Ana Drago. É uma conjugação de factores. Eles iam atirar o PS para os braços da direita sem ele querer? Seria uma grande irresponsabilidade. E as sondagens mostram ao longo dos anos que a maioria dos eleitores destes partidos sempre foi a favor de alianças, opinião que cresceu.
Como diz no livro, era um problema de elites.
Era uma décalage entre elites e eleitorado. O eleitorado queria que eles se entendessem. E eles sabem isso. Apesar de tudo lêem os nossos livros e sabem estas coisas, não são estúpidos. E não concordo com a visão de que foram só concessões da esquerda radical. O PS fez grandes concessões. Está muito mais euro-crítico. António Costa diz isso no prefácio, que é preciso uma atitude crítica forte à União Europeia, ele fala que é preciso uma reforma profunda, uma ruptura na União Económica e Monetária.
Em que é que há influência da esquerda radical?
Todas aquelas medidas que são as medidas farol do acordo têm influência da esquerda radical. Por exemplo, esta volta à TSU que o Vieira da Silva queria fazer é uma espécie de "não entra pela porta mas entra pela janela". Mas é também na atitude crítica do PS perante a Europa, sem prescindir do europeísmo.
Mas isso não é uma estratégia de sobrevivência de um partido social-democrata como o PS?
Também é, é uma mistura. É fugir à pasokização da social-democracia europeia. Veja o que está a acontecer em França. Vai ver o que vai acontecer àquele senhor do Eurogrupo na Holanda. E era de alinharem com a extrema-esquerda? Não era. O que está a acontecer com a social-democracia é que ela perdeu a sua identidade. Ou porque se aliou formal ou informalmente com a direita, como é o caso da Grécia, da Holanda. Ou então governou ao centro como o senhor Hollande. Pela primeira vez na V República francesa o Presidente não vai a votos. O Sarkozy perdeu, mas este nem concorre porque ia ser humilhado e não é por governar à esquerda.
Já disse e escreveu que a evolução da relação do PS e do BE foi sendo sinalizada. A manifestação de disponibilidade por parte do PCP surpreendeu-o?
Surpreenderam-me os dois. Mas o PCP viu que tinha de participar nisto porque não chegava o BE. Houve uma conjugação de vários factores. Se calhar, se desse para fazer só com um, o outro tinha tentado ficar de fora. O Presidente não podia dissolver porque se ia embora, podia quanto muito nomear um governo de gestão. Penso, aliás, que Jerónimo de Sousa é do grupo que está mais sintonizado com esta solução. Agora o PCP nesta aliança é fundamental, desde logo porque tem uma coluna sindical, tem uma influência importantíssima no terreno social.