Bósnia reacende conflito com recurso sobre genocídio no tribunal internacional
A presidência tripartida da Bósnia-Herzegovina está dividida por causa da decisão unilateral de Bakir Izetbegovic, que ameaça reacender as tensões que deram origem ao conflito mais sangrento na Europa desde a II Guerra Mundial.
Dez anos depois de uma decisão do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) que não reconheceu responsabilidades da Sérvia no genocídio na Bósnia, no prazo limite para a apresentação de recurso, Bakir Izetbegovic, o membro bósnio da presidência tripartida do país, decidiu recorrer formalmente da decisão, ignorando os dois colegas da presidência, um sérvio e outro croata. Volta a pairar uma nuvem de crise política, num país já por si frágil, e os receios do agravamento das tensões que deram origem ao conflito mais mortífero na Europa desde a II Guerra Mundial.
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Dez anos depois de uma decisão do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) que não reconheceu responsabilidades da Sérvia no genocídio na Bósnia, no prazo limite para a apresentação de recurso, Bakir Izetbegovic, o membro bósnio da presidência tripartida do país, decidiu recorrer formalmente da decisão, ignorando os dois colegas da presidência, um sérvio e outro croata. Volta a pairar uma nuvem de crise política, num país já por si frágil, e os receios do agravamento das tensões que deram origem ao conflito mais mortífero na Europa desde a II Guerra Mundial.
Em 2007, o TIJ decidiu num processo que exigia que a Sérvia fosse declarada responsável por um genocídio em território bósnio durante o conflito que se estendeu durante três anos e meio. O tribunal de Haia reconheceu o genocídio, mas apenas na cidade de Srebrenica. No entanto, considerou que os sérvios, apesar de culpados de não evitarem o massacre, não tinham responsabilidades directas.
“As tensões da Bósnia têm sido permanentes desde a assinatura dos acordos de Dayton, apesar de terem vindo a ser dirimidas politicamente – umas vezes melhor, outras pior – sem recurso à violência”, explica ao PÚBLICO o major-general Carlos Branco, ex-observador militar das Nações Unidas na Antiga Jugoslávia, que tem publicada obra sobre o tema (A Guerra nos Balcãs – Jihadismo, Geopolítica e Desinformação, Colibri). Por isso, o militar defende que o processo judicial “não irá reavivar tensões, apenas agravá-las ainda mais”.
Uma decisão como a de Izetbegovic “tem consequências imediatas”, num país com um “arranjo muito susceptível às declarações políticas”, frisa, por seu lado, Ricardo Alexandre, editor de Internacional da RTP e editor do programa da Antena 1 Visão Global, que está a realizar um doutoramento sobre a região dos Balcãs.
“Esta decisão pode causar desestabilização não só na Bósnia-Herzegovina mas em toda a região”, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros da Sérvia, Ivica Dacic, que foi um dos primeiros a reagir, logo que Izetbegovic manifestou publicamente a intenção de apresentar o processo de recurso à decisão judicial de 2007.
Do lado bósnio há outro tipo de prioridades. Izetbegovic defendia, depois de se reunir com 50 políticos bósnios muçulmanos, juristas e representantes das associações das vítimas da guerra, que “toda a gente precisa da verdade, até aqueles que se opõem, uma verdade que será escrita por juízes internacionais, experientes e imparciais”.
“Receio que tenhamos entrado numa crise muito séria”, avisou, por seu lado, Mladen Ivanic, o representante sérvio na presidência da Bósnia.
“O governo mais complexo”
Os problemas políticos e constitucionais de uma decisão como esta são inerentes à complexidade da história recente da Bósnia-Herzegovina e do sistema político que foi criado no período de pós-guerra, que põe toda a ênfase na composição étnica do país. Num artigo de 2014, o Guardian perguntava-se se este não seria o “sistema de governo mais complexo do mundo”. Mas, para se explicar este tipo de governação, é necessário recuar aos acordos de Dayton e ao conflito que esteve na sua base.
Os tiros começaram a fazer-se ouvir no início do desmembramento da Jugoslávia. Depois de a Croácia e a Bósnia terem declarado a independência, os sérvios, que se opunham à dissolução do país, pegaram em armas para controlar os territórios em que eram maioritários nas antigas repúblicas da federação jugoslava. Mais ou menos ao mesmo tempo, os bósnios e os croatas abriram também as hostilidades entre si, dando corpo às suas ambições territoriais.
Os separatistas sérvios, apoiados militarmente pelo líder da República da Sérvia, Slobodan Milosevic, embrenharam-se num conflito violento. Surgiram relatos de atrocidades que ainda hoje são lembradas: execuções, violações, campos de detenção, ataques deliberados a comunidades étnicas e "limpezas étnicas", com dos bósnios muçulmanos a serem as vítimas.
Depois da entrada em acção da NATO, em 1994, e naquela que foi a sua primeira intervenção militar, os bósnios começaram a ganhar terreno aos separatistas. Aproveitando a reviravolta na guerra que se estava a verificar, a Administração americana de Bill Clinton começou a movimentar-se no sentido de estabelecer um acordo que terminasse com as hostilidades.
A 1 de Novembro de 1995, os líderes da Bósnia, Sérvia, Croácia e representantes dos EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Rússia e da União Europeia chegaram a um entendimento, depois de 21 dias ininterruptos de negociações na cidade americana de Dayton, no Ohio, sob a liderança do diplomata Richard Holbrooke. No dia 14 de Dezembro desse ano, em Paris, o acordo foi formalmente assinado. No total, contabilizaram-se mais de 250 mil mortos e mais de dois milhões de refugiados.
Se estes acordos tiveram o mérito e a importância de colocar um ponto final no conflito, a verdade é que as divisões étnicas profundas permaneceram e o sistema político criado não ajudou. O jornalista Ricardo Alexandre cita Richard Holbrooke: “O acordo de Dayton não foi para garantir a Bósnia como um país independente, foi para parar a guerra.”
A Bósnia tornou-se um país com duas entidades: a Federação croato-muçulmana da Bósnia-Herzegovina e a Republika Srpska. A Federação é maioritariamente composta por bósnios muçulmanos e croatas católicos e a República por sérvios ortodoxos. Apesar de existir ainda uma grande dificuldade no cálculo dos números, o Census realizado em 2013, e publicado no ano passado, demonstrava que o país é composto por 50,1% de bósnios, 30,8% sérvios, 15,4% croatas e 2,7% respeitantes a “outros”.
Numa tentativa de fazer representar as três comunidades étnicas, foi criada uma presidência tripartida, eleita directamente, em que cada membro tem de fazer parte de cada uma das comunidades – bósnia, croata e sérvia. Assim, não é de estranhar que uma decisão como a que foi tomada por Bakir Izetbegovic cause desconforto e dúvidas constitucionais.
A Bósnia do pós-guerra tornou-se “um país dividido em duas entidades, mas no fundo em três etnias, onde só uma delas quer que o país exista unido enquanto tal”, explica Alexandre.
Carlos Branco não tem dúvidas em afirmar que a iniciativa do membro bósnio da presidência “era absolutamente desnecessária e não vai seguramente contribuir para a tão necessária reconciliação das comunidades étnicas que compõem o tecido social do país”.
Outra das decisões dos magistrados internacionais de 2007 agora contestada é o reconhecimento do genocídio apenas em Srebrenica, onde mais de oito mil bósnios muçulmanos foram executados, chocando o mundo inteiro. Branco discorda “que tenha alguma vez existido genocídio em Srebrenica ou em qualquer outro lugar da Bósnia”. “Houve sim crimes de guerra, algo hediondo, mas essencialmente diferente de genocídio”, argumenta.
Sem responsabilidade, haverá estabilidade?
Por tudo isto, fica a faltar algo na região para que se alcance a verdadeira estabilidade política e social, e a paz definitiva. Algo que os acordos de Dayton e a Justiça internacional não conseguiram concretizar, pelo menos a longo prazo. E um desses passos é o apuramento de responsabilidades: “É da maior importância apurar as responsabilidades pelo conflito e pelos crimes cometidos. Só assim se conseguirá obter uma paz duradoura (…). O apuramento das responsabilidades deve ser feito de uma forma indiscriminada e envolvendo todos os intervenientes", explica Carlos Branco.
"Igualmente crucial", avisa, é a forma como é conduzido o processo, pois, “mal executado, poderá tornar-se numa arma de arremesso política, de vingança e retaliação”.
Ricardo Alexandre concorda que este ponto é “muito importante”, mas duvida se o processo deverá ser realizado “exclusivamente através do TIJ, que é sempre considerado político por uma das partes”.
Para além disso, há outros mecanismos de justiça internacional que podem ser utilizados, "como a criação de comissões de verdade e de reconciliação”. Carlos Branco refere opção idêntica: “É pena os actores internacionais não se terem empenhado na identificação das responsabilidades recorrendo a um poderoso instrumento de reconciliação como são as comissões da verdade.”
A crise que parece agora abater-se na Bósnia, desencadeada por um processo judicial, pode demonstrar a fragilidade da paz e estabilidade alcançadas no pós-guerra. Quando se desenha o futuro nos territórios em conflito, esquece-se que “os antigos beligerantes das guerras civis vão continuar a ser vizinhos, a morar nas mesmas cidades e nalguns casos nas mesmas ruas”, sublinha o antigo responsável da ONU.
No caso da Bósnia, “há vários responsáveis pelo conflito, tanto internos como externos", diz o major-general português. "As elites étnicas foram de facto os actores materiais responsáveis pelos acontecimentos no terreno; todas, sem excepção.”
Ricardo Alexandre refere também a actuação da comunidade internacional, que contribuiu para impedir “o que a certa altura se chegou a achar que seria possível" e que "hoje em dia é mais ou menos uma miragem: uma reconciliação na Bósnia”.
Outro dos temas que, na opinião do editor de Internacional da RTP, merecem uma revisão é o próprio sistema de Educação bósnio. O ensino da História, por exemplo, depende da "comunidade étnica a que se pertence”. Este foi um “esquema criado para evitar escolas absolutamente segregadas, mas que acaba por perpetuar essa segregação”, conclui.
O major-general Carlos Branco chama a atenção, por sua vez, para a cronologia dos conflitos armados na região dos Balcãs, para concluir que o regresso das armas pode não estar assim tão distante. “A região entra em convulsão sempre que se verificam alterações na ordem internacional, como aconteceu durante a Grande Guerra, na II Guerra Mundial e a seguir à Guerra Fria", alerta. "A violência regressará em força à região na próxima vez que se altere a correlação de forças internacional”, prevê. Se se olhar para o outro lado do Atlântico, e para a nova Casa Branca liderada por Donald Trump, talvez se perceba grande parte desta questão.
"Bairro europeu" é uma rubrica com histórias que estão um pouco fora do radar das notícias nos países europeus
Notícia corrigida no dia 9 de Março de 2017: onde se lia Tribunal Penal Internacional deve ler-se Tribunal Internacional de Justiça