A (re) construção da figura do emigrante

Está em mudança a forma como os portugueses residentes em Portugal encaram os portugueses residentes no estrangeiro. Já não há os choques de outros tempos. O emigrante já não é só o trabalhador agrícola ou o operário fabril. Pode ser qualquer um.

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Como é que os portugueses residentes em Portugal encaram os portugueses residentes no estrangeiro? Os portugueses residentes no estrangeiro sentem-se apreciados ou depreciados pelos residentes em Portugal? Há um modo de olhar os velhos emigrantes e outro de olhar os novos? Algo mudou desde que os filhos das classes médias começaram a procurar emprego lá fora?

Não é que tenha havido um inquérito. É que estas questões orientaram entrevistas a uma dezena de investigadores ou representantes das comunidades portuguesas na tentativa de perceber a (re) construção da figura do emigrante, enquanto o país continua a ser sacudido pela nova vaga migratória. 

“Tudo isto é complexo, mas podemos dizer que estamos a viver um momento de transição, que tem a ver com a história das comunidades, com novos conceitos sociopolíticos, com a ascensão social que houve dentro das famílias, com as novas gerações”, refere Elsa Lechner, investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “E com os novos emigrantes.”

A emigração é, como há muito ditou o historiador Magalhães Godinho, uma “característica estrutural” da sociedade portuguesa. Houve muitos modelos ao longo dos tempos. Os fluxos vão de diversas regiões para diversos países – cada qual com o seu contexto. E isso, avisa Lechner, faz toda a diferença.

Tudo começou com os Descobrimentos e as políticas de ocupação. O primeiro grande fluxo ocorreu na segunda metade do século XIX, associado à troca de trabalho escravo por trabalho assalariado. E já muita controvérsia houve em torno das “casas de brasileiros” nos alvores do século XX.

Na primeira metade do século XX, os portugueses continuaram a rumar ao Brasil, mas também aos Estados Unidos, ao Canadá, à Venezuela. A partir da década de 60, flagelados pela pobreza, a ditadura e a guerra, fugiram, sobretudo, para outros países europeus, em particular para França. E uma vez mais, as casas foram encaradas como parte de uma incontinência ostentatória.

Já neste século, na sequência da crise da dívida e das políticas de austeridade, os portugueses passaram a ir para todo o lado, embora prefiram a Europa, com destaque para a França e o Reino Unido. Já não vão só pouco ou nada qualificados, também quadros médios e superiores, técnicos especializados.

Luta de classificação social

É tão arriscado fazer generalizações sobre os mais de dois milhões que estão fora, como sobre os mais de 10 milhões que estão dentro. E, no entanto, durante muito tempo, observa Albertino Gonçalves, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, os emigrantes foram “um alvo de privilegiada eleição para julgamentos”.

“Até ao princípio dos anos 70, a relação era cordial”, recorda aquele sociólogo. “Os emigrantes vinham, faziam festa. Eram figuras respeitadas, admiradas. A partir daí, começou a haver problema, porque os estilos de vida, os comportamentos, as aspirações começaram a entrar em choque.”

Nos anos 1990, quando Gonçalves fez uma investigação sobre a figura do emigrante, os de dentro tendiam a descrever os de fora como corajosos, trabalhadores, honestos, mas muitos acusavam-nos de serem exibicionistas e de sobrevalorizarem o dinheiro. “Parece que trazem o rei na barriga”, diziam-lhe.

Havia quem evitasse conduzir nos meses de Verão por achar que os emigrantes eram um perigo. Referiam o deficiente estado das estradas, a inexperiência, a vontade de fazer tudo num dia, o querer estar em vários sítios ao mesmo tempo, a excitação, a impaciência, mas sobretudo o tal exibicionismo. “Querem dar nas vistas”, protestavam. “Querem mostrar a potência das máquinas.”  

Não era só nas estradas, também nos cafés, nas discotecas. “Tudo o que nos anos 60 podia parecer festividade, solidariedade, tornou-se exibicionismo e vaidade nos anos 70”, diz Gonçalves. “Antes, convidar as pessoas para uma rodada na taberna era generosidade. Depois, estar armar-se.”

Victor Pereira, investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, chama a atenção para a “dificuldade em aceitar a mobilidade social numa sociedade que foi rígida durante tanto tempo – no Estado Novo, cada um tinha o seu lugar.” Com efeito, a construção social da figura do "emigrante", torna Gonçalves, “desenrolava-se no seio da luta de classificação social que atravessava toda a sociedade portuguesa”.

“Não eram os pobres que criticavam os emigrantes”, esclarece Gonçalves. “Esses, se pudessem, faziam o mesmo.” Eram as novas classes médias. Diziam que os emigrantes tinham dinheiro, mas não tinham gosto, cultura, educação. “Hoje, é diferente. Hoje, já não há tanta diferença”, observa. “Naquele tempo, os emigrantes eram pessoas que no estrangeiro viviam de forma sóbria, mantinham poucos contactos sociais, iam trabalhar de madrugada e voltavam à noite. Essa distância já não existe.”

O emigrante já não é só o trabalhador agrícola ou o operário fabril. “O emigrante é qualquer um”, sublinha. Partem homens e mulheres, jovens e menos jovens, do campo e da cidade, com muita, pouca ou nenhuma qualificação. “Já não é uma emigração de avestruz, é uma emigração que participa nas sociedades de acolhimento. Estão na Suíça, vivem como suíços. E isso valoriza-os, capacita-os.”

Novos e velhos emigrantes podem chocar lá fora. Ainda há pouco, Carlos Pereira, director do semanário Luso Jornal França e do mensário Luso Jornal Bélgica, viveu um episódio que, em seu entender, ilustra bem essa possibilidade. Um homem há muito residente em França queixou-se que um familiar lhe pedira ajuda para se mudar de Portugal com a mulher e o filho. Ajudou-o a encontrar casa, a matricular a criança, a arranjar um emprego para ele e outro para a mulher. “E, no fim disso tudo, disse-lhe: ‘Agora, vou arranjar-te um trabalho para a noite.’ E o outro respondeu: ‘Muito obrigado, mas não preciso. À noite, quero estar com a família.’ E o homem levou a mal. Quando era jovem, tinha um emprego de dia, outro à noite e ainda fazia alguma coisa ao fim-de-semana. Não percebe que a nova emigração não queira trabalhar, trabalhar, trabalhar. Eles querem ver os filhos crescer e ele acha que eles querem andar à boa vida.”

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Concerto em Marco de Canaveses, Agosto de 2015 fernando veludo

Antes e depois do 25 de Abril

O discurso político também foi mudando. Há, desde logo, um antes e um depois do 25 de Abril de 1974: Antes, era adverso. Depois, tornou-se favorável. “O emigrante passou a ser dinâmico, empreendedor, uma espécie de novo Vasco da Gama, que parte para seu bem, mas também para bem do todo”, enfatiza Victor Pereira. Podia, com remessas, ajudar a salvar o país. “É suposto adaptar-se, ser apreciado como trabalhador empenhado e respeitador, guardar sempre ligações a Portugal.”

Em 1977, o 10 de Junho, antigo Dia de Camões, de Portugal e da Raça, tornou-se Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Já em 1980, a Secretaria de Estado da Emigração, que fora criada logo em 1974, transformou-se em Secretaria de Estado das Comunidades. E tudo isto lhe cheira a um prolongamento do discurso "luso-tropicalista" do Estado Novo. Portugal não é só um pequeno país na periferia europeia. As “comunidades” tomaram o lugar das “colónias”. É nelas que Portugal reencontra a sua representatividade territorial.

O que são, afinal, as comunidades? Os portugueses e os descendentes. Só que há quem não tenha qualquer ligação com Portugal e quem mantenha uma ligação intensa. Gabriel Marques, por exemplo, nasceu nos EUA há 33 anos e é lá que mora, mas todas as manhãs lê jornais portugueses. “Temos nosso sangue, nossos nomes, nossa linguagem, nossa cultura”, diz este conselheiro das comunidades portuguesas. “Ser português numa comunidade imigrante [dos EUA] é ter uma língua própria.”

Antes e depois da entrada na UE

Com a entrada na União Europeia, e os sucessivos quadros de apoio, as remessas perderam peso no Produto Interno Bruto. A emigração tornou-se um sintoma de atraso num país que se esforçava para alcançar os níveis de desenvolvimento dos outros Estados-membros. Na euforia da década de 90, com a chegada de imigrantes do Leste da Europa, do Brasil e já não só dos Países Africanos da Língua Oficial Portuguesa, houve a tentação de anunciar que Portugal já não era um país de emigrantes. Só que os portugueses nunca deixaram de sair.

A partir de 2009, subiu em flecha o número de saídas do território nacional, agora com um forte carácter temporário. O discurso mediático, sublinha Pereira, concentrou-se nos jovens qualificados, quando o grosso do fluxo se faz de não qualificados. Era como se não se quisesse admitir que, apesar do investimento na educação, Portugal continua a fornecer mão-de-obra barata.

O estigma não desapareceu por completo. “Muitas pessoas de classe média recusam a ideia de que são emigrantes, dizem que são expatriados”, refere aquele professor da Universidade Pau et des Pays de l’Adour. Mas esbateu-se, torna Lechner. As novas gerações, dentro e fora, são mais escolarizadas. E as velhas, como as novas, andam muito cá e lá. “Também já não há tanta diferença entre o país de destino e Portugal, que tem as suas estradas, os seus hospitais, as suas escolas.”

Apesar da diversidade, os media continuam a oferecer uma visão binária. “Há os portugueses de sucesso (desde que tenha meia costela portuguesa, a pessoa é incluída na comunidade) e os portugueses explorados”, elucida Pereira. “Fala-se de sucessos ou de fracassos, mas a maior parte tem uma vida normal. A maioria saiu para ter uma vida mais digna e conseguiu o que desejava, que era ter um trabalho, uma casa, acesso a bens de consumo corrente, dar melhor educação aos filhos.”

“Acho que há um desconhecimento de parte a parte”, declara Pedro Rupio, conselheiro das comunidades portuguesas na Bélgica. “Muitos emigrantes e descendentes continuam a conhecer a aldeia de origem e pouco mais. Por outro lado, em Portugal, não há noção da realidade e de toda a complexidade que constituem as comunidades. Os portugueses ‘de Portugal’ ficam sempre admirados quando me ouvem falar português porque supostamente deveria ter um nível de português muito reduzido.”  

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Festas em Gondomar fernando veludo

Trunfo da dupla pertença

Ainda abundam piadas sobre o “falar castiço dos e/imigrantes continentais nos países da francofonia”. “Esta nossa gente castiça ‘habita’ (fr. habiter), querendo dizer reside, mora, em bairros característicos. Usa ‘lionêtes’ (fr. lunettes), querendo dizer óculos. ‘Marcha’ (fr. marcher), querendo dizer anda, caminha, segue, vai”, exemplifica António de Vasconcelos Nogueira no livro Os Portugueses no Luxemburgo. E situações há em que o recurso a estrangeirismos, explica, “pretende evidenciar progresso, civilidade, promoção socioeconómica e ascensão cultural”. Mas estas variantes “não são exclusivas de um estrato social pobre”. Os cultos e viajados também as usam. Aquele linguajar “híbrido” reflecte o esforço de adaptação.

Flávio Alves Martins, presidente do Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas, não nota discriminação por parte do “português médio”, mas não diz o mesmo do Estado. Há uma petição a exigir recenseamento eleitoral automático aquando da alteração da morada para o estrangeiro no Cartão de Cidadão e introdução do voto electrónico para quem vive fora. Os conselheiros também querem mais do que quatro deputados eleitos pelos círculos da emigração. Não compreendem porque esses não podem ter dupla nacionalidade como os eleitos pelos círculos nacionais. Denunciam a “situação caótica da rede consular”. E não se conformam com a propina no ensino de Português no estrangeiro. “Temos o sentimento que Portugal nos vira as costas e sentimo-nos uma vez mais como cidadãos de segunda categoria”, resume Rupio.

Há uma armadilha. “Fazendo o que se fizer por Portugal ou pelo país de nascimento, para Portugal sempre se será estrangeiro (pelo país de nascimento e residência); e no país de nascimento e de residência sempre se será estrangeiro (pela nacionalidade e pelas raízes)”, descreve Nelson Campos, conselheiro das comunidades portuguesas na Alemanha. Não tem de ser assim. Menos ainda dentro da União Europeia. Ser português em França “significa ser cidadão europeu pleno”, diz Paulo Marques, conselheiro das comunidades portuguesas em França. “Significa envolver-me nas decisões, ser um trunfo de dupla pertença para levar aos dois países.”

Apesar de tudo, uma nova fase parece estar a começar. No ano passado, o Presidente da República e o primeiro-ministro celebraram o 10 de Junho em França. "Isso aconteceu não uma vez por acaso, aconteceu por uma escolha muito determinada, e vai prosseguir nos próximos anos. Estaremos os dois juntos celebrando, em Portugal território físico e em Portugal território espiritual, fora do território físico, o 10 de Junho, ano após ano”, discursou Marcelo Rebelo de Sousa.