No Alentejo, a música abre portas há muito fechadas
Na sua 13.ª edição, o Festival Terras Sem Sombra inicia visitas guiadas pelo património religioso, e não só, de oito localidades do Baixo Alentejo.
Apesar da chuva que caiu todo o dia, pelas nove da noite a Igreja Matriz de Santo Ildefonso, em Almodôvar, Baixo Alentejo, começa a encher-se, pelas nove e meia está completamente cheia. O concerto que marcou o arranque da 13.ª edição do festival de música sacra Terras Sem Sombra e trouxe até Almodôvar o cruzamento entre a música barroca pelo grupo Accademia del Piacere, dirigida por Fahmi Alqhai, e o flamenco, pela voz de Arcángel.
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Apesar da chuva que caiu todo o dia, pelas nove da noite a Igreja Matriz de Santo Ildefonso, em Almodôvar, Baixo Alentejo, começa a encher-se, pelas nove e meia está completamente cheia. O concerto que marcou o arranque da 13.ª edição do festival de música sacra Terras Sem Sombra e trouxe até Almodôvar o cruzamento entre a música barroca pelo grupo Accademia del Piacere, dirigida por Fahmi Alqhai, e o flamenco, pela voz de Arcángel.
Com Espanha como país convidado e O Espiritual na Arte como tema, o festival percorre oito localidades do Baixo Alentejo: Almodôvar (em Fevereiro), Odemira (este sábado e domingo), Santiago do Cacém (25 e 26 de Março), Castro Verde (8 e 9 de Abril), Serpa (6 e 7 de Maio), Ferreira do Alentejo (27 e 28 de Maio), Sines (3 e 4 de Junho) e Beja (17 e 18 de Junho).
Organizado pela associação Pedra Angular e com direcção artística de Juan Ángel Vela del Campo, chega este sábado a Odemira, onde a Igreja de São Salvador vai receber, às 21h30, o concerto De Beata Virgine Maria: Música Portuguesa de Invocação Mariana.
Antes do concerto, durante a tarde, há uma visita ao centro histórico (entre as 15h e as 17h30). E domingo (10h) começa o passeio à descoberta da biodiversidade na região – esta ligação à natureza faz parte integrante do festival e centra-se num aspecto diferente em cada região. No caso de Odemira, o rio Mira servirá de pretexto para se falar sobre o futuro da natureza ribeirinha.
Mas a grande novidade deste ano são os passeios pelo património nas tardes de sábado. “Não são visitas especializadas, mas abrem janelas e propiciam uma primeira abordagem às cidades e vilas e aos espaços circundantes”, explica José António Falcão, director do Terras Sem Sombra. Para além de mostrarem o património religioso, muito do qual tem vindo a ser recuperado nas últimas décadas, as visitas permitem que se entre em locais habitualmente fechados. “Vamos ver sítios arqueológicos e monumentos que foram recentemente recuperados, mas também visitar palácios privados, que ainda são habitados.”
Foi preciso deixar passar tempo para que estas visitas se tornassem possíveis. "O 25 de Abril e as ocupações de terras que aconteceram depois provocaram feridas no nosso tecido social”, afirma José António Falcão. “Essas feridas foram cicatrizando mas algumas nunca foram resolvidas. Há agora a possibilidade de estabelecer uma ponte que tinha sido destruída e conseguimos que algumas famílias abrissem patrimónios que estavam fechados a sete chaves. Isso aconteceu com grande naturalidade através da música, que é uma franqueadora de portas.”
O Terras Sem Sombra alarga-se assim a outro tipo de património depois de, há 13 anos, ter nascido com o objectivo de tornar vivo o património religioso do Alentejo. José António Falcão conta como tudo começou: “Segundo as estatísticas, o património religioso constitui cerca de 70% do universo do património cultural português. Tem um peso esmagador, e aqui no Alentejo é a principal fileira patrimonial.”
Está representado em todas as terras, por mais pequenas que sejam. “É muito diversificado, vem desde a época paleo-cristã até à actualidade.” O problema é que, apesar de ser ainda um património vivo, “há cada vez menos pessoas a utilizá-lo”.
Quando o Departamento do Património Histórico Artístico da Diocese de Beja (a que José António Falcão pertence e que se apoia muito no trabalho de voluntários) começou a trabalhar nesta questão, em 1984, a situação era grave. “A seguir à revolução as obras nas igrejas tinham parado, não havia meios nem capacidade para se fazer intervenções”, explica.
Depois, já na década de 80, “toda a gente começou a fazer obras que, foram, em muitos casos, muito mal conduzidas, houve destruições, perdas patrimoniais, atentados e furtos. Foi uma década terrível em termos de perda de peças, com quadrilhas organizadas, enfim, uma razia.”
A decisão de proteger este património, começando por o inventariar, foi do então bispo de Beja, D. Manuel Falcão. “Esta diocese, que era considerada a mais empobrecida e com maiores dificuldades de afirmação religiosa, conseguiu transformar-se num exemplo do ponto de vista de protecção do património, o que foi reconhecido pelo Estado e pela própria Santa Sé.”
Mas não bastava recuperar. Era preciso que as comunidades voltassem a viver o património. “Existem cerca de 500 monumentos religiosos”, diz o director do Terras Sem Sombra. “Desses, 150 têm uma utilização corrente, outros 150 têm uma utilização errática e sobram duas centenas que não têm qualquer espécie de utilização”.
O que a Diocese tentou foi “ir encontrando usos compatíveis, com a musealização de alguns, a transformação de outros em locais de actividades culturais, ateliers de artistas, pequenas bibliotecas”. Mesmo assim, prossegue, “notámos que em alguns monumentos que estavam já longos anos abandonados era difícil restabelecer essa ligação”.
Foi aí que surgiu a ideia do Terras Sem Sombra. “O festival conseguiu que, através da música, as pessoas regressassem a esses espaços.” Todo o projecto teve um grande avanço na década de 90 e início de 2000. Com a colaboração do então IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico) e de vários municípios foi possível “recuperar mais de 50 igrejas e alguns milhares de obras de arte”.
Mas, se hoje o balanço é positivo, José António Falcão recorda que este foi um caminho cheio de obstáculos. “Não foi fácil na altura convencer a Diocese a estabelecer acordos de cooperação com Câmaras que pertenciam à CDU, tal como não foi fácil estabelecer um acordo histórico com o antigo IPPAR.”
As dificuldades voltaram a surgir quando o festival começou a integrar o património natural e a biodiversidade na programação. “Houve sorrisos sarcásticos e pessoas a perguntar o que é que o património religioso tem a ver com o natural. Tivemos que explicar que muitas das nossas igrejas são verdadeiros santuários para o património natural, os adros têm líquenes, insectos, aves, répteis e até alguns mamíferos que encontram verdadeiros oásis em zonas consolidadas há muitos séculos.” Foi preciso fazer um trabalho de sensibilização que passou, por exemplo, por explicar às pessoas que “não se pode tirar o musgo para fazer presépios”.
Da parte da Igreja, houve “inicialmente uma oposição veemente e alguns sacerdotes recusaram-se mesmo a participar nas acções”. Mas a Santa Sé “mostrou-se sempre muito interessada” e a integração dos dois patrimónios na programação foi acontecendo. Só podia ser assim, conclui José António Falcão, porque “o património não tem fronteiras”.