O papel da Gulbenkian
A Gulbenkian regressa a uma função que sempre foi sua: generosamente, expor a melhor arte portuguesa a quem a visita.
A nave do antigo CAM está diferente, muito diferente. Se nos últimos anos esteve dedicada apenas a receber exposições antológicas, ou selecções da Colecção Moderna do Museu Gulbenkian agrupadas por temas, acolhe-nos desde esta sexta-feira com uma abordagem simultaneamente cronológica e disciplinar ao modernismo e à contemporaneidade em Portugal. E porque é anacrónico hoje querer isolar do seu contexto internacional a arte que se vai produzindo em qualquer lugar, esta nova apresentação inclui peças criteriosamente escolhidas no núcleo de artistas estrangeiros das colecções da Gulbenkian.
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A nave do antigo CAM está diferente, muito diferente. Se nos últimos anos esteve dedicada apenas a receber exposições antológicas, ou selecções da Colecção Moderna do Museu Gulbenkian agrupadas por temas, acolhe-nos desde esta sexta-feira com uma abordagem simultaneamente cronológica e disciplinar ao modernismo e à contemporaneidade em Portugal. E porque é anacrónico hoje querer isolar do seu contexto internacional a arte que se vai produzindo em qualquer lugar, esta nova apresentação inclui peças criteriosamente escolhidas no núcleo de artistas estrangeiros das colecções da Gulbenkian.
O trabalho completa as apresentações que têm vindo a ser feitas desde que Penelope Curtis assumiu a direcção do Museu. Se no espaço da Colecção do Fundador as intervenções são obrigatoriamente de outro tipo – trata-se não apenas de uma colecção fechada, mas também de um edifício que, como uma caixa de jóias, foi concebido para acolher aquela selecção de objectos e pouco mais – no espaço da Colecção Moderna há lugar e possibilidade para fazer tudo o que se queira. Portugal em Flagrante, o título genérico desta exposição, inclui já desde o Verão passado material gráfico no piso 01. Com a apresentação da pintura no piso 1 e, agora, da escultura e de outro tipo de obras tridimensionais na nave, a que se junta a possibilidade de ver filmes de artista na pequena sala junto ao átrio e de apreciar novas esculturas nos jardins, o visitante fica com a possibilidade de poder criar a sua própria leitura daquela que foi a arte em Portugal nestas épocas.
Nunca é de mais assinalar que só raramente podemos ver na capital uma apresentação suficientemente completa e correcta desta produção artística. Olhando para as outras grandes instituições museológicas lisboetas que se dedicam às artes visuais, vemos que o Museu Colecção Berardo será actualmente a mais atenta em cumprir a sua função. Mas o âmbito dessa colecção é outro, mais focado nos grandes nomes internacionais. Pelo contrário, o Museu do Chiado, decerto por razões mais do que justificadas (mas que nós ignoramos), apenas parcelarmente cumpre o papel de apresentar as colecções que possui de arte oitocentista e modernista. Restava a Gulbenkian, que abnegadamente se substituiu a sucessivos governos desde os anos 60 na promoção da arte portuguesa, seja pelo apoio específico a artistas que queriam estudar em Londres ou Paris, seja pela compra de obras modernas ou contemporâneas. Se não fosse a Gulbenkian, quantos Amadeos existiriam actualmente em Portugal? Pouquíssimos, de certeza. A grande maioria estaria nas mãos de coleccionadores estrangeiros.
Por isso, é-nos muito grato ver de novo esta magnífica colecção em exposição, agora enriquecida pelo olhar totalmente fresco de Curtis, alheio às intrigas e maledicências infelizmente habituais no meio artístico, e apoiado – como é visível – numa equipa da casa competente e experimentada. A visita começa com surpresas, como a presença, por exemplo, de exemplares de escultura oitocentista e do Estado Novo, que precedem uma montagem onde as associações insólitas são a norma. Quem esperaria ver Lourdes Castro ao lado de Eduardo Nery, ou uma assemblage de Júlio Pomar lado a lado com outra de Maria Beatriz, e tudo não muito longe de um núcleo de esculturas de José Pedro Croft? De um núcleo de obras feitas com dobragens de metal (de Ângelo de Sousa, por exemplo, mas também de artistas ingleses) avista-se, no piso de cima, o conjunto de pinturas de António Areal sobre as Demoiselles de Avignon de Picasso. Perto, as curadoras juntaram Julião Sarmento, Carlos Nogueira e Túlia Saldanha, uma associação onde o contraste entre os brancos e os negros é a tónica comum. Tal como Sarmento e Lourdes Castro, há outros artistas que associaríamos mais facilmente à pintura e que surgem aqui com peças tridimensionais, como Ana Jotta. Mais longe, assinalam-nos a vizinhança entre Paula Rego e David Hockney. Mas, claro, há muito mais para ver.
Penelope Curtis tem na escultura a sua disciplina de eleição, e por isso o destaque dado aqui a esta disciplina acaba por se justificar também por esta razão. Os projectos temporários, um a decorrer no Espaço Projecto, assinado pelo húngaro Tamás Kaszás, e outro, uma primeira Conversa (muitas outras se seguirão) feita por Manuela Marques a propósito do Palácio de Versalhes, que deu origem a uma revisitação das Colecção do Fundador pelos curadores Nuno Vassallo e Silva e João Carvalho Dias, merecerão análise mais detalhada. Por agora, fiquemo-nos com o regresso da Gulbenkian a uma função que sempre foi sua: generosamente, expor a melhor arte portuguesa a quem a visita.