As faces ocultas do caso do dr. Núncio
De uma vez por todas, o país tem de acabar com os donos disto tudo, tem de extinguir os foros privilegiados que os políticos não só cultivam como se esmeram em esconder de todos os outros.
O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio deu, por estes dias, aos partidos da esquerda, uma prenda de valor político inestimável: veio oferecer-lhes uma base factual e sólida na qual poderão daqui para a frente sustentar as suas teses de que a direita é um clube selecto que protege os contribuintes afortunados ao mesmo tempo que suga até ao tutano os pobres e os remediados. A luta de classes que, na sua essência doutrinária, continua a animar o Bloco e o Partido Comunista encontrou no estranho caso de Paulo Núncio um creme que se vai colar à pele do PSD e do CDS por muito tempo. É por isso que os danos causados pelo ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não se reparam com a assunção de responsabilidades políticas. A prazo, o anátema do partido dos ricos autenticado pelo indicador de Paulo Núncio vai contaminar a credibilidade de Assunção Cristas, de Maria Luís Albuquerque e de Pedro Passos Coelho – que, nesta história, parece mais vítima do que algoz. As marcas são tão indeléveis que só o tempo longo ou uma mudança de liderança as conseguirão extirpar.
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O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio deu, por estes dias, aos partidos da esquerda, uma prenda de valor político inestimável: veio oferecer-lhes uma base factual e sólida na qual poderão daqui para a frente sustentar as suas teses de que a direita é um clube selecto que protege os contribuintes afortunados ao mesmo tempo que suga até ao tutano os pobres e os remediados. A luta de classes que, na sua essência doutrinária, continua a animar o Bloco e o Partido Comunista encontrou no estranho caso de Paulo Núncio um creme que se vai colar à pele do PSD e do CDS por muito tempo. É por isso que os danos causados pelo ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não se reparam com a assunção de responsabilidades políticas. A prazo, o anátema do partido dos ricos autenticado pelo indicador de Paulo Núncio vai contaminar a credibilidade de Assunção Cristas, de Maria Luís Albuquerque e de Pedro Passos Coelho – que, nesta história, parece mais vítima do que algoz. As marcas são tão indeléveis que só o tempo longo ou uma mudança de liderança as conseguirão extirpar.
O que sabemos que aconteceu às comunicações dos bancos sobre transferências de capital para offshores ainda tem zonas cinzentas, mas, no essencial, podemos avaliar desde já o que aconteceu. E o que aconteceu não é apenas inaceitável do ponto de vista político; é igualmente desprezível do ponto de vista ético e eventualmente condenável do ponto de vista legal. Paulo Núncio é um jurista qualificado em questões fiscais e sabia perfeitamente que havia uma directiva europeia transposta em 2008 para a legislação nacional que o obrigava, e ao seu Governo, a acompanhar e a publicar estatísticas sobre transferências para os offshores. Deliberada e conscientemente, não o fez, mesmo que, para o efeito, tenha sido alertado pelo director-geral do fisco. E não o fez por uma de duas razões: ou porque queria encobrir dados, o que nos leva para uma estirpe de suspeição altamente perigosa; ou porque queria apenas poupar o Governo às consequências políticas de uma informação explosiva – enquanto se cortavam salários e aumentavam impostos à classe média, os privilegiados sangravam o capital do país para o estrangeiro.
Em qualquer dos casos, Paulo Núncio dificilmente terá direito a salvar-se nesta história com a mera acusação de que foi apenas incompetente, negligente ou politicamente inepto. Ninguém acredita nestas possibilidades e, se alguém acreditava, o ex-director-geral do fisco Azevedo Pereira tratou de acabar com a ilusão. O que torna o seu caso feio e grave é precisamente a mais que provável intencionalidade com que meteu as declarações sobre as transferências na gaveta. Não podemos (nem devemos) acusá-lo de ter tido qualquer responsabilidade no extravio das tais 20 declarações que assinalavam o êxodo para o exterior de quase dez mil milhões de euros. Mas podemos (e devemos) acusá-lo de ter fomentado na administração tributária um caldo de cultura de sonegação e opacidade, através do qual a expatriação de enormes quantidades de dinheiro não merecia mais do que o rabisco de um displicente “visto” no canto superior de um qualquer despacho.
Com ou sem explicações, o “caso offshores” vai-se transformar no “caso Núncio” e, por efeito de mancha de óleo, o Governo anterior ficará em causa. Com o PS confortavelmente instalado a antever as cenas dos próximos capítulos, o Bloco e o PCP não precisam de se esforçar para que a nuvem da suspeição cause danos na credibilidade da oposição. O Bloco limita-se a acusações de “negligência” ou a “silêncios ensurdecedores” e evita a menção de dolo ou de dolo eventual porque sabe que não é preciso gastar trunfos. Desde que deixaram o poder, os partidos do anterior Governo estavam a ser fustigados por terem varrido o lixo da banca para debaixo do tapete, estavam a ser politicamente exauridos por terem apregoado a inevitabilidade da sua receita económica quando toda a gente está a perceber que a realidade não é bem assim, estavam a ser alvejados por prenunciar o regresso de um diabo que ninguém vê, foram apontados como autores de uma estratégia de empobrecimento que teve como alvo funcionários públicos ou os pensionistas; mas nunca tinha havido um facto que, aos olhos do cidadão comum, tornasse essas acusações tão verosímeis como o “caso Núncio”.
O PSD e o CDS bem podem agora apregoar que foi o seu Governo que dilatou o prazo de prescrição de crimes fiscais associados à peste dos offshores de quatro para 12 anos, que impôs a progressividade nos cortes salariais e nos impostos, que aumentou as pensões do regime não-contributivo, que atacou as PPP, que impôs impostos extraordinários a grandes empresas e a grandes fortunas; no essencial, só os seus mais devotos fiéis os vão ouvir. Porque, contrariando todas essas narrativas, houve um secretário de Estado que acabou por conceder aos titulares de contas offshore um estatuto de inaceitável imunidade fiscal; houve um ministério que impediu o fisco de analisar a origem e o destino de uma enorme sangria de capital num tempo em que o país desesperava com falta de dinheiro para investir ou para manter as suas funções básicas de soberania e responsabilidade social.
Acreditar que o “caso Núncio” vai ficar apenas na esfera do ex-secretário de Estado é, por isso, uma ilusão. Maria Luís Albuquerque será o próximo alvo, ou porque sabia e foi cúmplice ou não sabia e foi incompetente. E, subindo na hierarquia, nem Passos nem Assunção Cristas escapam ilesos. Mesmo que todas as transferências fossem legais, mesmo que o fisco não tenha a haver um único cêntimo, o veneno da suspeita sobrepor-se-á às causas que a oposição abrir nos próximos tempos, por muito justas que sejam. A nova comissão parlamentar de inquérito sobre a Caixa já estava moribunda (já todos sabemos que Centeno faltou à verdade e que o comportamento do Governo na tentativa de branqueamento da sua negociata com António Domingues foi uma vergonha) e com o “caso Núncio” tornou-se uma bizarria. Durante meses, PSD e CDS estarão diminuídos, mesmo que se juntem à argumentação da esquerda na procura de toda a verdade.
Na política, parecer é muitas vezes tão importante como ser e a cristalização da ideia de que o mesmo Estado que expulsou famílias das suas casas por dívidas ao fisco tapou deliberadamente os olhos a transferências de milhares de milhões de euros para paraísos fiscais é arrasadora. De uma vez por todas, o país tem de acabar com os donos disto tudo, tem de extinguir os foros privilegiados que os políticos não só cultivam como se esmeram em esconder de todos os outros. Há-de passar muito tempo até que numa discussão política o PSD e o CDS deixem de ouvir: “Ai sim? E então os dez mil milhões que fugiram para os offshores?...” Pode ser que aprendam.