Rota da Líbia é um inferno de violência para as crianças migrantes

Muitas são espancadas e violadas ao longo da viagem em busca de refúgio na Europa. Nos centros de detenção, a violência continua, alerta a UNICEF.

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Mamahba, um rapaz guineense de 17 anos, coberto com um cobertor térmico depois de uma operação de salvamento no Mediterrâneo, perto da costa líbia, no início de Fevereiro Reuters/GIORGOS MOUTAFIS

Kamis tem nove anos. Partiu com a sua mãe da Nigéria, atravessou o deserto de carro e foi resgatada no mar quando o bote em que seguia estava à deriva antes de ser confinada a um centro de detenção na cidade líbia de Sabratha, onde não havia praticamente água. “Eles costumavam bater-nos todos os dias. Batiam nos bebés, nas crianças e nos adultos”, contou Kamis. “Aquele lugar era muito triste. Não há lá nada.” Aza, a mãe, pagou 1400 dólares pela sua viagem e a dos filhos. Garante que desconhecia os riscos envolvidos, mas que voltar para trás não era uma opção. Enquanto esperavam no bote só pensava: "Fiz tudo isto pelos meus filhos e pelo seu futuro, não quero perdê-los. [...] Se for eu, não faz mal [morrer], mas eles não."

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Kamis tem nove anos. Partiu com a sua mãe da Nigéria, atravessou o deserto de carro e foi resgatada no mar quando o bote em que seguia estava à deriva antes de ser confinada a um centro de detenção na cidade líbia de Sabratha, onde não havia praticamente água. “Eles costumavam bater-nos todos os dias. Batiam nos bebés, nas crianças e nos adultos”, contou Kamis. “Aquele lugar era muito triste. Não há lá nada.” Aza, a mãe, pagou 1400 dólares pela sua viagem e a dos filhos. Garante que desconhecia os riscos envolvidos, mas que voltar para trás não era uma opção. Enquanto esperavam no bote só pensava: "Fiz tudo isto pelos meus filhos e pelo seu futuro, não quero perdê-los. [...] Se for eu, não faz mal [morrer], mas eles não."

As denúncias das organizações são uma constante e o trabalho dos técnicos e voluntários no terreno incansável, mas os resultados continuam a ser diminutos. Para os milhares de crianças que atravessam o Mediterrâneo central todos os anos – em 2016 foram 26 mil, o dobro do ano anterior e nove em cada dez sem a companhia de um adulto – a viagem do país onde nasceram em direcção à Europa está carregada de perigos. E não é só no mar.

O mais recente relatório da Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, divulgado esta terça-feira, concentra-se sobretudo nas dificuldades e privações que as crianças enfrentam em terra, em particular na Líbia, menos documentadas pelas agências, jornais e televisões internacionais.  

O documento – A Deadly Journey for Children: The Central Mediterranean Migrantion Route – dá conta, por vezes em detalhes perturbadores, de histórias de violência, escravatura e abusos sexuais de que são alvo estas crianças extremamente vulneráveis que procuram chegar a Itália. Histórias que, na maioria das vezes, não denunciam por medo serem presas ou deportadas.

Por trás deste receio está também o facto de muitos dos agressores usarem uniforme. A avaliar pelos testemunhos das 122 mulheres e crianças ouvidas (82 mulheres e 40 menores), as fronteiras são particularmente perigosas. “A violência sexual está espalhada e é sistemática em zonas de cruzamento e em checkpoints”, garante o relatório.

Epicentro da violência

Pela sua posição geográfica – tem uma ampla costa mediterrânica e faz fronteira com a Tunísia, a Argélia, o Níger, o Chade, o Sudão e o Egipto – a Líbia tem servido de destino a muitos dos que procuram desesperadamente chegar à Europa e, por isso, tem vindo a transformar-se no epicentro desta violência extrema.

“Quase metade das mulheres e crianças entrevistadas [ao longo da preparação do relatório] foi vítima de abuso sexual durante a migração”, lê-se no documento. “E com frequência mais do que uma vez em mais do que um local.” Aproximadamente um terço admitiu ter sido alvo de algum tipo de violência na Líbia.

“Muitas destas crianças foram brutalizadas, violadas e mortas nesta rota”, disse à televisão pública britânica Justin Forsyth, vice-director executivo da Unicef, que neste novo relatório mapeia 34 centros de detenção na Líbia, três deles no interior do país, em zonas de deserto, a maioria geridos pelas entidades governamentais encarregues do combate às migrações ilegais. Nestes locais que podem chegar a ter sete mil pessoas a falta de água, de comida e de cuidados médicos é permanente, embora a situação seja ainda mais grave nos centros entregues a grupos armados e cujo número se desconhece.

Nestes centros entregues às milícias, os abusos são ainda mais recorrentes e o acesso que a eles têm a Unicef e outras organizações de auxílio aos migrantes e refugiados é muitíssimo mais diminuto.

Em 2016, mais de 180 mil pessoas passaram da Líbia para Itália, entre elas quase 26 mil crianças, a maioria a viajar sozinha. E a tendência é para que este número cresça, explica o vice-director executivo à BBC, porque a situação em países como a Eritreia, a Nigéria e a Gâmbia está a piorar.

Issaa, 14 anos, é dos que tentaram a sua sorte sem que um adulto o acompanhasse. “O meu pai juntou dinheiro para a minha viagem, desejou-me boa sorte e depois deixou-me ir”, disse aos técnicos encarregues do inquérito da Unicef. Isto aconteceu há dois anos e meio e este rapaz do Níger está hoje num centro líbio. Tudo o que Issaa quer é “atravessar o mar” e procurar trabalho para poder ajudar os cinco irmãos que ficaram em casa.

Nas mãos dos traficantes

Grande parte desta violência começa nos traficantes a quem os migrantes pagam para poder atravessar o deserto ou cruzar o Mediterrâneo. O negócio está entregue a criminosos que muitas vezes obrigam mulheres e crianças a prostituírem-se para pagarem as suas dívidas. Muitas das mulheres que chegam à Europa para entrar em redes de exploração sexual passam pela Líbia, diz o relatório. A situação instável em que o país vive torna muito difícil controlar este sistema que perpetua vários tipos de abuso e que parece estar completamente fora de controlo.

A Unicef está agora a pressionar todos os países, sobretudo a Líbia e os vizinhos, para que criem corredores de segurança para estas crianças em marcha, para que combatam o tráfico de seres humanos e para que promovam o registo de nascimentos nos seus países e a reunificação das famílias de migrantes e refugiados. Na agenda para a acção deste fundo das Nações Unidas está ainda a garantia de condições de acesso à educação e à saúde, o combate à xenofobia e à descriminação em países de trânsito ou de destino e, objectivo maior, a adopção de medidas capazes de minimizar as causas subjacentes aos movimentos de pessoas em larga escala.

“Quer sejam migrantes ou refugiados, vamos tratá-los como crianças”, pediu Forsyth em declarações à BBC.

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Operação de salvamento na costa líbia em Agosto de 2016 Yara Nardi/Cruz Vermelha Italiana/REUTERS

Os números causam impacto. Em 2016, pelo menos 4579 pessoas perderam a vida entre a Líbia e Itália, na mais mortífera das rotas marítimas que ligam África à Europa. Mais de 700 eram crianças, lê-se no comunicado que a organização das Nações Unidas fez chegar às redacções.

"O percurso do Norte de África para a Europa através do Mediterrâneo central é uma das mais perigosas rotas migratórias para as crianças e as mulheres", diz Afshan Khan, directora regional da Unicef e coordenadora especial para os refugiados e para a resposta à crise na Europa. "A rota é maioritariamente controlada por contrabandistas, traficantes e outros indivíduos que procuram aproveitar-se das crianças e mulheres desesperadas que apenas buscam refúgio ou uma vida melhor."

De acordo com este que é o mais recente relatório da Unicef, três quartos dos entrevistados com menos de 18 anos (o que inclui até crianças com cinco anos, como Victor, que acabou por reencontrar a mãe que já julgava perdida) admitiram ter sido alvo de algum tipo de violência, assédio ou agressão por parte de adultos.

O documento mostra ainda que os migrantes da África subsariana têm tendência a ser mais mal tratados do que aqueles que são do Egipto ou do Médio Oriente. Will é um desses migrantes. Depois de perder os pais num naufrágio, o rapaz de oito anos nascido no Níger está hoje detido na Líbia: "Nós queríamos ir para Itália. Estávamos num barco. Passado um bocado o barco começou a meter água e pouco depois afundou”, recorda. “Houve um rapaz que sobreviveu e eu agarrei-me a ele durante horas. Ele salvou-me. Mas o meu pai e a minha mãe morreram. Nunca mais os vi.”

O que acontecerá a Will, Victor e Issaa? O que acontecerá às suas famílias? Kamis, a menina de nove anos com que começa este artigo, quer ser médica. Antes de saírem de casa a mãe disse-lhe: "Não te preocupes, quando chegarmos a Itália serás médica." Aza ainda não pôde cumprir a promessa de Europa que fez à filha. Estão as duas num centro de detenção na Líbia.