A alternativa às salas de chuto é “deixar que as pessoas morram pelas ruas”

Joan Colom director-geral das Toxicodependências na Catalunha fala no programa com salas sob supervisão de profissionais de saúde. E garante que a experiência na região mostra que reduzem danos ligados ao consumo de drogas.

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Adriano Miranda

O aumento das recaídas entre os consumidores de heroína provocado pela crise económica ressuscitou a velha discussão sobre a necessidade de criação das salas de consumo assistido. E, numa altura, em que o próprio João Goulão, director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) reconhece que estas se tornaram necessárias, nomeadamente no Porto e em Lisboa, o PÚBLICO entrevistou Joan Colom, o director do programa de drogas, VIH, hepatites e outras doenças sexualmente transmissíveis do governo da Catalunha.

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O aumento das recaídas entre os consumidores de heroína provocado pela crise económica ressuscitou a velha discussão sobre a necessidade de criação das salas de consumo assistido. E, numa altura, em que o próprio João Goulão, director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) reconhece que estas se tornaram necessárias, nomeadamente no Porto e em Lisboa, o PÚBLICO entrevistou Joan Colom, o director do programa de drogas, VIH, hepatites e outras doenças sexualmente transmissíveis do governo da Catalunha.

De passagem pelo Porto, nesta sexta-feira, onde foi falar dos resultados das 14 salas de chuto existentes na Catalunha, garante que estas salas (onde, além do consumo de droga injectada e fumada, os toxicodependentes podem tomar banho, mudar de roupa ou simplesmente beber um café, nos chamados “centros de café e calor”) não só acabaram com os consumos a céu aberto como diminuíram as overdoses e reduziram as infecções por VIH associadas ao consumo de drogas a “mínimos históricos”. A conflitualidade social também diminuiu à boleia destas salas, onde se registam cerca de 110 mil consumos por ano. A maior das várias que existem em Barcelona, e que atende cerca de duas mil pessoas por ano, custa ao governo da Catalunha, entre 800 e 900 mil euros anuais.

Como está a correr a experiência das salas de consumo assistido na Catalunha?
Em primeiro lugar, há que entender as salas de consumo supervisionado como uma estratégia de redução de danos. O nosso objectivo é que as pessoas não consumam, mas isto é uma utopia. O segundo objectivo é que, se o fizerem, o façam quanto mais velhos melhor, porque começar a consumir drogas aos 14 anos é pior do que consumir pela primeira vez aos 25. E a terceira é que, se consumem, o façam com o mínimo possível de problemas para si e para os demais. E é a isso que chamamos redução de danos e de risco: diminuir a morbilidade, a mortalidade, evitar a infecção de doenças. As principais estratégias para cumprir estes objectivos são os programas de substituição, como a metadona; os programas de troca de seringas (na Catalunha, distribuímos um milhão de seringas por ano e temos oito mil pessoas em programas de tratamento com metadona); e o terceiro, mas não menos importante, são as salas de consumo. Na Catalunha, temos 14 salas de consumo. E o objectivo principal destas salas é que as pessoas, em vez de se injectarem na rua (de qualquer maneira, com potenciais problemas e infecções, produzindo danos…), se incorporem dentro de salas deste tipo, onde podemos escutá-las e onde lhes facilitamos uma agulha esterilizada, água destilada para preparar a solução, um filtro, copo, um garrote. Isto debaixo da supervisão de um profissional de saúde que intervém no caso de algo correr mal, mas que, sobretudo, vai conseguir que esta pessoa vá a estes centros e que, a partir da relação directa que se estabelece, acabe por recorrer também aos serviços de saúde e sociais, inclusive aos tratamentos.

As salas funcionam desde quando?
A primeira sala deve ter já uns 15 anos. E as únicas condições que pomos aos utilizadores é que tenham mais do que 18 anos e que não venham intoxicados, porque haveria um risco acrescido de overdose. Evidentemente não lhes damos a droga nem analisamos a que levam. Só ajudamos, supervisionando e dando-lhes um espaço onde, terminada a injecção, podem descansar. É muito importante lembrar que, em todos estes anos, ninguém morreu numa sala de consumo, porque nas poucas overdoses que tivemos pudemos intervir a tempo. Nestas salas de consumo assistido temos também salas de fumadores para as pessoas que fumam a heroína e a cocaína.

Quanto custam e quem as financia?
O Departamento de Saúde do governo da Catalunha financia as entidades e organizações que as gerem e que são ONG [Organizações Não-Governamentais] com uma ampla experiência no tratamento e na intervenção com dependências de droga. O custo difere de uma sala para outra. A mais importante, que tem muitos profissionais e atende quase duas mil pessoas por ano, custa a à volta de 800 ou 900 mil euros anuais.

Quanto é que o governo da Catalunha investe nesta estratégia de redução de danos, mais concretamente com as salas de consumo?
À volta de de entre dois a três milhões de euros por ano.

Como foi a reacção da população?
Houve de tudo. Houve o fenómeno nimby (acrónimo para a expressão inglesa not in my back yard),com as pessoas a dizerem que achavam muito bem o que estávamos a fazer, desde que não fosse no lugar onde viviam. Mas a questão é que as salas de consumo têm que estar próximas dos locais onde se faz o tráfico. Tudo o que fique a mais de 15 minutos a pé entre a compra da droga e a injecção não tem nenhum sentido, porque as pessoas compram e vão logo injectar. Noutro caso, em Barcelona, uma via rodoviária muito importante ficou com a circulação interrompida duas horas, todas as quartas-feiras, por causa dos protestos contra a criação de uma sala, na zona do Hospital Vall d’Hebron. E isto durante nove meses. Mantivemos reuniões com associações de moradores, organizações e entidades de todo o tipo e, no final, conseguimos mantê-la. Hoje, funciona sem nenhum problema. Em geral, fizemos anteceder a criação destas salas de uma política de trabalho com a comunidade, explicando que o que pretendíamos não era aumentar o problema, mas diminui-lo (diminuir as seringas que caem no chão, diminuir os casos de violência, roubos e assaltos…) e aumentar a conexão dos utilizadores de drogas com o sistema de saúde, melhorando a sua qualidade de vida e, a longo prazo, incorporando-os nos serviços assistenciais. Portanto, o objectivo principal foi fazer visível algo que todo o mundo esmaga, esconde, porque, quando se torna o problema visível, podemos começar a resolvê-lo.

Na escolha dos locais, houve o cuidado de, por exemplo, salvaguardar distâncias mínimas de escolas?
Mas nenhum estudante se sentirá atraído por uma sala destas! Acredita que isto [mostra fotografias de uma sala com ambiente asséptico] pode gerar a mínima atracção para alguém? É um mito. Ninguém vai a uma sala deste tipo se não for um dependente da droga.

Estava a pensar na concentração de toxicodependentes à porta.
Trabalhamos muito essa questão, no sentido de conseguir que os utilizadores destas salas não se concentrem à porta. Dentro das instalações, em muitos casos, temos chuveiros e lugares para mudar a roupa e para comer e tomar um café. É aquilo a que chamamos “centros de café e calor”. Agora imagine alguém que está na rua, que consome droga num local terrível, no meio do nada, e que se injecta à pressa porque a polícia pode aparecer a qualquer momento. E a quem, em vez disso, é dada a possibilidade de entrar num sítio higiénico, onde pode tomar um banho, falar com um médico, um psicólogo, ou um enfermeiro, e desabafar sobre as dificuldades que tem com as burocracias, a mulher que o abandonou, a gravidez indesejada… Não tem nada que ver com a rua.

Compreende a resistência política em fazer avançar as salas de chuto em Portugal?
Não o entendo nem partilho dessa resistência. Acerca do tema das drogas há sempre muito medo: dos vizinhos, dos moradores, do impacto, dos eleitores… E é muito importante que os políticos apostem nisto. Na Catalunha, tivemos a sorte de o plano de drogas ter sido sempre uma prioridade do governo que apoiou todas estas estratégias. Isto implica capacidade de liderança, de convencimento, de compromisso. Qual é a alternativa às salas de consumo? Deixar que as pessoas morram pelas ruas? Que se injectem pelas ruas? Que partilhem seringas e que se infectem? Não. Estes mecanismos demonstraram a sua eficácia. Há que utilizá-los. Nós agora estamos a formar os próprios utilizadores para que usem e levem consigo um kit que tem tudo o que necessitam num cenário de overdose. Imagine que um consumidor sai com outro que toma uma dose superior ou que esteve um tempo abstinente e que voltou a injectar-se e sofre uma overdose. Ele primeiro chama os serviços de emergência médica, tenta reanimar a pessoa (também lhes ensinamos isso) e, se não conseguir, injecta-lhe naloxona intramuscular. Neste momento, temos mais de seis mil usuários com esse kit e a respectiva formação para agir num cenário de overdose.

Crê que os toxicodependentes têm capacidade, ou a disciplina, para manterem o kit consigo e usá-lo?
Há aí também outro mito que leva a crer que os toxicodependentes não são capazes de fazer nada. Não é verdade. Em geral, ninguém quer morrer. E quando lhes ensinamos os mecanismos e as técnicas, sem que lhes digamos que deixem de consumir, são perfeitamente capazes de ajudar um companheiro que precise de ajuda. E fazem-no. A naloxona não é uma droga, é um antídoto com o qual não podem fazer mais nada.