Eu não sou eu nem sou a outra
Levar longe de mais a dúvida. Deixar que a possibilidade de ser o outro se instale com o seu exército do medo, coberto de nevoeiro e distância. Um romance que luta com as suas criaturas, encurralando-as junto ao abismo.
A temática do duplo tem sido uma das mais presentes na escrita de Ana Teresa Pereira. Aquele que é inquietantemente próximo, mesmo sendo (ou sobretudo por ser) o fantasmático outro, é um veio que tem sulcado muitos dos seus livros. A título de exemplo, refiram-se apenas três exemplos recentes: O Lago (Relógio D’Água, 2010), A Outra (Relógio D’Água, 2010), A Pantera (Relógio D’Água, 2011). Em muitos pontos destes lugares escritos se poderia adoptar como estribilho certo passo de A Pantera: “a história tinha algo de circular, como se os dois se encontrassem presos numa jaula”. Actrizes que se convertem em personagens, numa fusão de prática ficcional e encarnação teatral (O Lago), ou escritoras que refazem o caminho de forma inversa, criando no corpo performativo a personagem da sua escrita (A Pantera), ou o espectro condutor de um ponto de vista que recria na pauta da alteridade (A Outra) todos se confinam à sua jaula. A jaula de serem prisioneiros de uma compulsão, um desejo nunca saciável, porque sem fonte. A necessidade de encontrar na própria busca a sua presa.
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A temática do duplo tem sido uma das mais presentes na escrita de Ana Teresa Pereira. Aquele que é inquietantemente próximo, mesmo sendo (ou sobretudo por ser) o fantasmático outro, é um veio que tem sulcado muitos dos seus livros. A título de exemplo, refiram-se apenas três exemplos recentes: O Lago (Relógio D’Água, 2010), A Outra (Relógio D’Água, 2010), A Pantera (Relógio D’Água, 2011). Em muitos pontos destes lugares escritos se poderia adoptar como estribilho certo passo de A Pantera: “a história tinha algo de circular, como se os dois se encontrassem presos numa jaula”. Actrizes que se convertem em personagens, numa fusão de prática ficcional e encarnação teatral (O Lago), ou escritoras que refazem o caminho de forma inversa, criando no corpo performativo a personagem da sua escrita (A Pantera), ou o espectro condutor de um ponto de vista que recria na pauta da alteridade (A Outra) todos se confinam à sua jaula. A jaula de serem prisioneiros de uma compulsão, um desejo nunca saciável, porque sem fonte. A necessidade de encontrar na própria busca a sua presa.
Também no seu mais recente livro, Karen, Ana Teresa Pereira tematiza a ideia de um outro/uma outra —, levando até aos limites do concebível, do exprimível, a tensão que faz cruzar os corpos e as mentes com os seus pares, lá onde se tocam como tecido sobre pele. Uma luz a travessar uma cortina. Algo assim que pareça real, mas seja, no fundo, a dúvida de toda a irrealidade. A trama de Karen lembra Rebecca, o romance de Daphne du Maurier, e a película homónima de Hitchcock inspirada no livro. A chegada da personagem feminina à moradia antes ocupada por uma outra mulher (ou a mesma?), o misterioso viúvo, a governanta da casa, o ambiente de mistério que cerca e nubla os passos de todos estes seressão condicionalismos e estimulantes na leitura deste romance.
Também essa possível coexistência, entre um livro e um filme, permite entender afinidades com o universo ficcional e com procedimentos e técnicas caros à sua novelística. A cinefilia é uma das marcas estilísticas da ficção de Ana Teresa Pereira. Karen começa com uma reflexão em torno de Noites Brancas, de Luchino Visconti. Por outro lado, Daphne du Maurier é a destinatária da dedicatória com que abre O Verão Selvagem dos Teus Olhos (Relógio D’Água, 2008). Numa entrevista em tempos concedida a Maria Leonor Nunes, afirmava Ana Teresa Pereira: “Há pouco tempo reli Rebecca, de Daphne du Maurier, e tive, mais uma vez, a impressão de voltar a um lugar que conheço muito bem: a alameda de rododendros, o quarto fechado onde alguém muda as flores das jarras todos os dias, a enseada com a casa de barcos. Acontece o mesmo com alguns dos meus contos. Há lugares que já existem dentro de nós, Gaston Bachelard escreveu sobre isso, nós subimos sempre a escada que leva ao sótão, descemos sempre a escada que leva à cave, o quarto no fundo do corredor tem sempre três degraus…” (Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 988, 2008).
Nesta breve reminiscência, quase uma auto-análise, a escritora retraça uma parte importante da sua produção escrita: essa espécie de hiper-realidade que consiste em abicar da precisão nas fronteiras entre o ficcionado e o vivenciado, a repetição de cenários, o sortilégio que se queda no pormenor (mesmo em aspectos como os muitas vezes revisitados nomes próprios), o fatalismo de seres que são, como se lê na epígrafe de A Noite mais Escura da Alma (Caminho, 1997), “a presa dos anjos”. Um excesso de realidade que é, paradoxalmente, um excesso de ficcionalidade. Existe uma tal confiança, uma entrega tão completa à ficção, que o próprio texto do romance explicita essa estado suspenso entre duas margens mal separadas, e apenas por um escasso fio de água. “Porque viera para tão longe? Um comboio qualquer e a última estação. A história de sempre.” (p.25) Quando a protagonista de Karen chega à casa em Northumberland que será lugar fulcral do romance, logo compara a governanta com uma actriz. Quando ainda caminhava pelas ruas de Londres (um tropismo essencial dos romances de Ana Teresa Pereira), a personagem sente-se como se estivesse no cenário de um estúdio, numa “realidade” fílmica. A cascata que, na sua obsessão (memória de um livro marcante da infância, outro traço relevante), a protagonista quer a todo o custo atravessar, parece simbolizar a possibilidade de levar a cabo essa brevíssima passagem entre o fingimento e a verdade. E vale como um emblema para a ficção da autora. Qualquer uma destas criaturas, nos romances de Ana Teresa Pereira, podia afirmar como uma personagem de A Linguagem dos Pássaros (Relógio D’Água, 2001): “Eu tenho alma de Stalker. Tenho de procurar, procurar sempre.”
O conflito entre identificação e dissemelhança, vivido pela protagonista em relação a uma desaparecida Karen, integra-se numa construção engenhosa, que corresponde à totalidade do romance. Tais movimentos de aproximação e afastamento marcam os ritmos do romance, até àqueles momentos em que a dúvida é maior, e tudo se torna imponderável“Surpreendia-me sempre a forma como ela falava de Karen, embora fingisse estar a falar de mim.” (p.46) O irresolúvel que toma conta destas vidas não chega a aplacar-se: a dúvida, a tensão e o medo, pelo contrário, mantêm a sua garra fechada sobre as personagens. Sobre nós. Como leitores, sabemos tanto como os seres destas narrativas. Também precisamos de continuar a procurar.