E o Óscar é... jovem, negro e homossexual
Numa cerimónia bem-comportada que premiou o que se esperava, a surpresa surgiu à vista da meta com a vitória de Moonlight como melhor filme. Uma vitória histórica para um filme literalmente “à margem” da indústria.
Os Óscares ficam sempre na história, por este ou aquele vencedor ou momento ou gague ou discurso ou celebração. Mas a cerimónia de 2017 vai sempre ser recordada pelo momento, pouco depois das cinco da manhã de 27 de Fevereiro em Lisboa, em que o filme que todos achavam que ia ganhar viu o Óscar ser-lhe tirado em cima do palco.
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Os Óscares ficam sempre na história, por este ou aquele vencedor ou momento ou gague ou discurso ou celebração. Mas a cerimónia de 2017 vai sempre ser recordada pelo momento, pouco depois das cinco da manhã de 27 de Fevereiro em Lisboa, em que o filme que todos achavam que ia ganhar viu o Óscar ser-lhe tirado em cima do palco.
Por esta altura já toda a gente sabe do erro de Faye Dunaway e Warren Beatty, a quem foi entregue por engano o cartão de vencedor de Melhor Actriz e não de Melhor Filme. (A PriceWaterhouseCoopers, consultoria responsável pela contagem de votos, assumiu entretanto por inteiro, num comunicado oficial, a responsabilidade do erro, anunciando que vai investigar como foi possível o envelope errado ter sido entregue aos apresentadores.) Também já toda a gente sabe da elegância com que o produtor de La La Land Jordan Horowitz o corrigiu em palco, chamando a equipa de Moonlight para receber o prémio que lhes era devido. E desde logo pulularam na Internet as comparações (ou conspirações?) à eleição de Novembro (onde Hillary Clinton perdeu a presidência apesar de ter ganho no voto popular), como se a bolha liberal dos Óscares fosse uma compensação impossível pela vitória de Donald Trump.
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O que realmente importa, contudo, é outra coisa: a inesperada e improvável vitória de Moonlight de Barry Jenkins como Melhor Filme na madrugada de 26 para 27 de Fevereiro de 2017 é algo de histórico no cinema americano. Como diz Sean Fennessey logo a abrir a sua história no site The Ringer: “Nunca um filme com um orçamento tão pequeno, um elenco tão desconhecido, uma história tão pessoal, um resultado de bilheteira tão modesto e uma origem tão improvável recebeu a maior honra da indústria do cinema.”
La La Land – Melodia de Amor, o musical retro-consciente e escapista de Damien Chazelle que partia triunfador para esta 89.ª edição dos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas com um recorde de 14 nomeações, pode ter levado o maior número de estatuetas da noite (seis, incluindo melhor actriz para Emma Stone e melhor realização para Damien Chazelle). Mas perdeu à vista da meta “o” Óscar que marca para a vida, criando a surpresa e abrindo toda uma série de leituras possíveis para a cerimónia 2017.
A começar pela “narrativa negra” — um ano cheio de vitórias de filmes e figuras negras, como compensação por todas as controvérsias #OscarsSoWhite de anos anteriores. A cerimónia entregou Melhor Filme, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Actor Secundário (Mahershala Ali, primeiro muçulmano a receber um Óscar) a Moonlight; melhor actriz secundária a Viola Davis (Vedações); melhor documentário para as oito horas de O. J. Made in America de Ezra Edelman, produzido para o canal de cabo ESPN.
A leitura que interessa, contudo, transcende questões de cor da pele: os Óscares têm sistematicamente tendência a premiar a mediania e o conformismo, “aquilo que já sabemos que gostamos” em vez de “aquilo que é realmente fora de série.” Ao dar o prémio máximo a Moonlight, a Academia decidiu premiar algo “fora de série”. Financiado fora dos grandes estúdios, Moonlight foi o menos visto dos nove nomeados a Melhor Filme (com apenas 23 milhões de dólares de receita americana), bem como o menos formatado e menos convencional. Jenkins, de 37 anos, com meia-dúzia de curtas e uma única longa em carteira (a excelente Medicine for Melancholy, exibida no IndieLisboa em 2008), adaptou com um elenco desconhecido e uma equipa composta de colegas da escola de cinema uma peça inédita do dramaturgo Tarell Alvin McCraney, In Moonlight Black Boys Look Blue, filmando no próprio bairro de Miami (Liberty City) onde o realizador cresceu. Contado em três tempos diferentes na educação do jovem Chiron (interpretado por três actores diferentes consoante a idade), Moonlight atira-se de cabeça a uma vivência que o cinema mainstream nunca abordou: o que significa ser jovem, negro, homossexual na América hoje (para que conste: McCraney é gay, Jenkins é heterossexual).
Como aponta Aisha Harris na Slate, é a primeira vez que um filme com personagens negras que não aborda o racismo ganha o Óscar de melhor filme. E, para lá da cor da pele, é a primeira vez que um filme sobre uma personagem homossexual ganha o prémio máximo da Academia. Nem Filadélfia de Jonathan Demme, Milk de Gus van Sant ou O Segredo de Brokeback Mountain de Ang Lee o conseguiram.
Os Óscares não deixaram por isso de ser mais do mesmo. Houve as previsíveis vitórias de solidariedade global (a segunda vitória do iraniano Asghar Farhadi em Melhor Filme Estrangeiro por O Vendedor, ou o galardão à curta documental The White Helmets, sobre os voluntários da defesa civil síria) e a homenagem ao profissionalismo rodado dos seus inúmeros técnicos e criativos, jovens ou veteranos (os prémios técnicos de La La Land, O Primeiro Encontro, O Herói de Hacksaw Ridge ou Monstros Fantásticos).
E, se não tivesse havido o espalhafatoso twist final de Moonlight, por entre a gaffe de Bonnie e Clyde e o equilíbrio discreto de uma cerimónia que cumpriu os requisitos, a maioria dos prémios corresponderam às (boas ou más) expectativas dos observadores. Mas bastou uma gaffe, e uma vitória em que já ninguém acreditava, para inscrever os Óscares de 2017 na história dos galardões como uma noite especial que escreveu, literalmente, direito por linhas tortas.