Há folia em Famalicão, e dura mais que três dias
Não tem samba, cabeçudos, caretos ou matrafonas. Ou pode ter, basta que os foliões queiram. A noite de Carnaval em Vila Nova de Famalicão é espontânea, mas há quem passe muito tempo a prepará-la ao pormenor.
Para já, em Vila Nova de Famalicão, só se ouve cantar o galo. Não há elefantes nem ursos a andar nas passadeiras e os super-heróis e as super-heroínas ainda se disfarçam por baixo de roupas normais. Mas durante os próximos dias, a cidade transforma-se.
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Para já, em Vila Nova de Famalicão, só se ouve cantar o galo. Não há elefantes nem ursos a andar nas passadeiras e os super-heróis e as super-heroínas ainda se disfarçam por baixo de roupas normais. Mas durante os próximos dias, a cidade transforma-se.
É assim todos os anos há década e meia. “Nós desde o princípio que vamos lá a festa. Aquilo era só aquela ruinha de Camões, era aquilo, mais nada. Passávamos lá, tinha o palcozinho para quem quisesse ir desfilar e era só aquilo, agora não, agora, em todo o lado de Famalicão, é Carnaval". Quem o diz é a dona das mãos responsáveis por espalhar alguma da magia pelas ruas da cidade.
Logo no final de Janeiro começam a chegar os pedidos. Pequeninos que se querem transformar nos seus grandes heróis e homens e mulheres grandes que querem vestir-se dos heróis de quando eram pequenos. E a Dona Carmo põe mãos à obra. Muitas das vezes, com uma máscara vestida.
Pega nos tecidos mais coloridos que em todos os outros dias ficam esquecidos, nas tesouras, nas purpurinas, nas fitas, nas pistolas de cola e nos brilhantes. "Faço à volta de uns 40 fatos por ano, adoro, é o que mais gosto de costurar”, confessa. Começa pelos dos mais pequenos, já terminados e pendurados num cabide do lado direito, à entrada, “prontos a levar para o desfile das escolinhas”. Há princesas, um Popeye, personagens da Patrulha Pata “e até uma bola de Berlim com creme”.
Na prateleira maior, guarda os fatos que vestiu noutros Carnavais. Ainda não fez o deste ano, “esse só fica pronto na segunda-feira e ao fim da tarde”. Também não revela em quê que se vai transformar. Na origem do segredo, está uma brincadeira “de há muitos anos”, explica a filha. "Saímos e chegamos todos mascarados, completamente tapados, não falamos com ninguém, pegamos com toda a gente e nunca ninguém sabe que somos nós”.
Antigamente, quando o Carnaval era mais pequeno, as pessoas “costumavam-se esconder no morro de terra” que tem à frente da casa onde moram. Depois seguiam-na até ao centro e antes que Carmo tivesse tempo de “pregar a partida”, era desmascarada.
Durante estes dias, “entra-se no Carnaval mal se põe um pé na rua”. Alexandra trabalha num dos bares “onde tudo começou”. É um dos vários espaços que ladeiam a Alameda Luís de Camões, uma rua larga, mas onde não são precisos mais de cem passos para a percorrer do início ao fim. Na noite de segunda para terça-feira, “a confusão é tanta que se demora mais de uma hora a passar pelo meio da multidão e chegar ao fim do caminho”. “Esta rua, de porta a porta, era só bares”, diz. Foi aqui que a festa começou há quinze anos e agora, milhares de pessoas depois, a Câmara começou a ajudar e a patrocinar algumas incentivas.
Cada bar monta uma barraca lá fora, servem-se bebidas que se entornam no meio da dança, e a festa faz-se no meio da rua. Faça sol ou faça chuva. Alexandra diz que ouve sotaques de toda a parte do país, “e até da Galiza”. No meio de tantos disfarces, ainda consegue reconhecer as pessoas da terra. E durante esta noite, as rivalidades entre bares que ficam frente a frente, são postas de lado. "Na noite de Carnaval damo-nos sempre bem, temos sempre de colaborar uns com os outros, quanto aos preços, aos DJ's. É uma noite em prol da rua, não é individual”. Pelas fotografias e vídeos que gravou no ano passado, arriscaria a dizer que por ali “passam entre cinco mil a seis mil pessoas".
Perto desta rua, vai ficar o palco móvel da Orquestra Pentágono. Este ano, a Câmara escolheu o conjunto dirigido por Manuel Faria, um dos foliões mais veteranos, para actuar. Manuel é claro: quem vai ao Carnaval de Famalicão, nunca mais vai querer outro.
Na sede da orquestra, ensaia-se o espectáculo. O Carnaval vai ser noite de estreias. Ao lado, há um pequeno atelier que serve de sala de arrumos. Os adereços de anos passados estão lá amontoados, os deste ano, já estão meticulosamente organizados num dos cantos da sala de ensaio. Vêem-se fatos de corações, sapatos vermelhos e capacetes a simular artérias. Foram todos feitos pelo Sr. Manuel “em todas as meias horinhas” que conseguiu arranjar, já que no resto dos dias, o trabalho ocupa mais tempo que a folia.
No intervalo do espectáculo, o Sr. Manuel e os amigos vão participar no desfile. No ano passado, ganhou o primeiro lugar e nos outros ocupou sempre o pódio. Este ano espera que a sátira inspirada no processo Octafarma, da “Máfia do Sangue”, convença o júri.
“Há Carnavais como o caso de Ovar, Estarreja e por aí abaixo que são Carnavais organizados, com escolas de samba que se vão preparando durante o ano, vão trabalhando nos seus corsos, nos seus carros alegóricos”. A diferença do Carnaval de Famalicão, diz, é que é “espontâneo” e por isso é que “conquistou cada vez mais gente”.
Manuel está a preparar esta noite há três meses. "Isto faz falta às populações, ajuda nestes dias a esquecerem o ritual do dia-a-dia". “Durante estes dias não se olha a despesas, é para aproveitar”, ri. Porque esta vida são dois dias. E o Carnaval, aqui, são bem mais que três.
Texto editado por Ana Fernandes