Disléxicos aos sete anos? Pode existir um problema de sobrediagnóstico
Em 2016, escolas do básico receberam diagnósticos de dislexia relativos a mais 2 mil crianças. Júri Nacional de Exames alerta para a "precocidade" de diagnósticos no 1.º e 2.º ano e para o efeito "perverso" que prática pode ter nos alunos.
Com a realização de provas de aferição no 2.º ano de escolaridade, o que aconteceu pela primeira vez no ano passado, embora com carácter facultativo, emergiu uma realidade que o Júri Nacional de Exames (JNE) classifica como “preocupante”: o número de crianças que aos 7 anos estão diagnosticadas como tendo dislexia ou incapacidade intelectual.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Com a realização de provas de aferição no 2.º ano de escolaridade, o que aconteceu pela primeira vez no ano passado, embora com carácter facultativo, emergiu uma realidade que o Júri Nacional de Exames (JNE) classifica como “preocupante”: o número de crianças que aos 7 anos estão diagnosticadas como tendo dislexia ou incapacidade intelectual.
Estas duas problemáticas estão enquadradas nas Necessidades Educativas Especiais (NEE), podendo os encarregados de educação dos alunos abrangidos requerer condições especiais para a realização de provas ou exames. No ensino básico foram apresentados 10.524 pedidos, sendo que 44% deles diziam respeito a alunos do 1.º ciclo de escolaridade.
Relativamente aos alunos que realizaram provas de aferição (2.º e 8.º ano) e para os quais foram solicitadas condições especiais, “verifica-se uma prevalência de 49% [3113] de situações assinaladas como incapacidade intelectual, sendo que destas 1887 foram diagnosticadas no 1.º e 2.º ano de escolaridade”, assinala o JNE no seu relatório sobre os exames de 2016, que foi divulgado nesta semana. Em 2016, foram realizadas 252 mil provas de aferição.
Em termos de prevalência, a dislexia aparece em segundo lugar, com 2035 registos, dos quais também “588 foram diagnosticados no 1.º e 2.º ano de escolaridade”, frisa o JNE.
Tanto a primeira situação como a segunda, tendo em conta a idade das crianças abrangidas, podem indiciar “uma eventual precocidade em alguns dos diagnósticos”, alerta este organismo, que no caso da dislexia lembra que, estando em causa crianças com seis ou sete anos, “podem não existir dados suficientes que consubstanciem um diagnóstico definitivo desta problemática”.
O JNE recorda ainda, a propósito, que “nos primeiros anos de escolaridade podem ser encontrados erros característicos de um aluno com dislexia, em alunos dito normais, que poderão apresentar dificuldades de leitura”. Por isso, adianta, “a precocidade de diagnósticos deste tipo pode ter um efeito perverso ao nível da aplicação reiterada de respostas educativas menos adequadas, que podem inclusive limitar o potencial de aprendizagem de um aluno”.
Em resposta ao PÚBLICO, o Ministério da Educação (ME) esclarece que "a referenciação dos alunos com necessidades educativas especiais é da total responsabilidade dos serviços de educação especial das escolas" e considera que o alerta feito pelo JNE "surge como forma de sensibilizar as escolas para a complexidade desta matéria".
O ME frisa ainda que é exemplo da importância desta matéria o facto de "as escolas, no âmbito dos seus planos de acção estratégica dirigidos à promoção do sucesso escolar, terem identificado maioritariamente o desenvolvimento das competências de leitura e da escrita, nos dois primeiros anos de escolaridade, como os domínios a privilegiar nas medidas implementadas".
Um problema de sobrediagnóstico?
O psicólogo José Morgado subscreve o alerta do JNE. “Não temos dados que permitam dizer que há um aumento de casos. O que penso que existe é um aumento de diagnósticos”, sendo que algumas destas “avaliações são feitas com alguma inconsistência”, diz.
Como “as dificuldades na leitura e na escrita são características do processo de aprendizagem”, o também professor e investigador do Instituto Superior de Psicologia Aplicada considera que também no campo das dislexias possa existir um problema de “sobrediagnóstico”, seja por “pressão das escolas por causa dos resultado ou dos pais que vêem assim uma possibilidade de garantir apoios aos filhos”.
“Trata-se de uma identificação demasiado precoce. Nestes níveis etários, muitos alunos estão ainda no exigente processo de aquisição de uma leitura fluente e as hesitações, os erros que se fazem não são na maioria dos casos senão tentativas para obter a fluência na leitura. Classificar estes alunos como disléxicos aos 7 ou 8 anos pode contribuir para lhes criar um estatuto de separação dos seus colegas o que não é em si positivo”, alerta o presidente da Associação Nacional de Docentes de Educação Especial, David Rodrigues.
O também professor da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa chama ainda a atenção para o seguinte: "continuamos a ter dificuldades na identificação clara do que é a dislexia. Os profissionais que deveriam fazer esta identificação - professores de Educação Especial e psicólogos - encontram-se mal apetrechados ao nível de instrumentos e modelos de avaliação para realizar uma identificação clara da dislexia. Assim, seria recomendável que os alunos fossem acompanhados preventivamente antes de se considerar que esta dificuldade específica na aprendizagem da leitura se considere existente”.
As condições especiais para a realização de provas ou exames podem passar, entre outras, pela adaptação de enunciados, grelhas de classificação diferentes ou pela possibilidade dos alunos realizarem provas diferentes das dos outros, o que só acontece em “casos especiais”.
A partir de 2014 esta listagem de condições especiais passou de novo a incluir as “limitações do domínio emocional e de personalidade”, o que inclui as crianças com autismo. Os outros “casos excepcionais” são os de “alunos cegos, com baixa visão, surdos severos ou profundos, com limitações motoras severas ou com limitações do domínio cognitivo”.
David Rodrigues defende, a propósito, que “os alunos devem ser avaliados com as formas e com os processos como foram ensinados”. Por isso, acrescenta, “era importante que a avaliação externa tivesse uma informação circunstanciada sobre o percurso do ensino e da aprendizagem do aluno para poder existir uma avaliação útil para se aquilatar dos progressos do aluno”.
Provas de escola
No que respeita às provas finais do 9.º ano de escolaridade, houve 4483 alunos que solicitaram condições especiais e destes quase metade pediu para realizar provas a nível de escola, um número que o JNE descreve como “muito significativo”. Dos 2079 pedidos apresentados foram indeferidos 245. Mais uma vez, a problemática com maior peso foi a da incapacidade intelectual (82%), seguindo-se-lhe as perturbações ligadas ao autismo (9%).
Os alunos com dislexia passaram, desde 2012, a ser obrigados a realizar os mesmos exames nacionais dos seus colegas sem NEE. As suas provas têm contudo critérios específicos de classificação para evitar uma “penalização dos erros característicos da dislexia”. Nos casos de “dislexia severa” pode ser autorizada a leitura dos enunciados por um dos professores vigilantes.
No ensino secundário houve, em 2016, 1882 pedidos para a realização de exames com condições especiais. Destes apenas 276 pediram para realizar exames a nível de escola. À semelhança do que aconteceu no básico, as duas principais problemáticas na base destes pedidos foram a incapacidade intelectual (36%) e as perturbações ligadas ao autismo (24%).
Para além dos alunos com NEE, houve outros 659 que pediram condições especiais de realização de exames devido a situações clínicas graves. E tanto no ensino básico, como no secundário, estas devem-se sobretudo a diabetes e a perturbações depressivas e de comportamento.