Holanda, 15 de Março: o primeiro teste do ano à maré populista e ao eurocepticismo
O modelo multicultural holandês foi uma ilusão que se desfez na viragem do século.
Mark Rutte, primeiro-ministro holandês, tem razões de queixa. A sua gestão económica foi excelente, mas os holandeses, para quem a prosperidade é um hábito, estão polarizados no debate da imigração. O dirigente xenófobo Geert Wilders é a vedeta das eleições legislativas de 15 de Março. E, através de Wilders, é o conjunto da extrema-direita europeia que se joga nestas eleições, que designam como cruciais, tendo em vista as presidenciais francesas de Abril e as legislativas alemãs de Setembro.
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Mark Rutte, primeiro-ministro holandês, tem razões de queixa. A sua gestão económica foi excelente, mas os holandeses, para quem a prosperidade é um hábito, estão polarizados no debate da imigração. O dirigente xenófobo Geert Wilders é a vedeta das eleições legislativas de 15 de Março. E, através de Wilders, é o conjunto da extrema-direita europeia que se joga nestas eleições, que designam como cruciais, tendo em vista as presidenciais francesas de Abril e as legislativas alemãs de Setembro.
Wilders e o seu Partido da Liberdade (PVV) têm liderado as sondagens nos últimos meses: teriam de 23 a 29 deputados (em 150). Mas o PVV perdeu terreno no último mês e foi praticamente alcançado pelo Partido Liberal e Democrata (VVD), de Mark Rutte. O primeiro teria agora entre 15,8% e 17,6% das intenções de voto, o segundo entre 15,2% e 16,9%. O facto de a campanha surgir como uma corrida entre Rutte e Wilders poderá encorajar o voto nos seus partidos em detrimento dos outros. O mapa partidário tem vindo a fragmentar-se nas últimas décadas e os grandes partidos tradicionais, sociais-democratas e democratas-cristãos, passaram para segundo plano. Concorrem nestas eleições 28 partidos e, segundo os analistas, pelo menos 11 poderão entrar no parlamento. A grande curiosidade é o resultado dos ecologistas de esquerda (GroenLinks), de Jesse Klaver, que poderão ganhar até 20 mandatos e tornar-se os kingmaker da próxima legislatura. A formação do futuro governo exigirá uma aliança de pelo menos três forças. O PVV de Wilders não fará parte da coligação governamental, garantem os principais partidos. Deste ponto de vista está isolado.
Anti-Europa e anti-islão
Por que se tornou Wilders tão importante se não vai governar? Em termos de força eleitoral está, aliás, muito abaixo de Marine Le Pen. É que, se ficar em primeiro lugar, proclamará vitória, passará a ter muito mais influência na política holandesa e dinamizará as campanhas das outras extremas-direitas europeias. E porque, a partir daí, tentará lançar uma campanha por um referendo sobre a saída do euro e da UE: o “Nexit” (“Ne”, de Nederland). Proclama no seu manifesto eleitoral: a Holanda “será de novo independente. Portanto, fora da UE”. Aprecia declarações bombásticas: “Vejo a União Europeia como um velho Império Romano a caminho do seu fim.”
A generalidade dos analistas é muito céptica quanto à possibilidade de sucesso desta iniciativa. Um “Nexit” teria péssimas consequências sobre a economia holandesa. Mas o inesperado êxito do “Brexit”, reforçado pela surpresa Trump, cria insegurança entre os observadores.
Falou-se do impacto de Trump na subida das expectativas de Wilders. Não é, pelo menos até agora, uma associação segura. Um quarto dos possíveis eleitores de Wilders diz-se hostil às políticas de Trump. Já traumatizados pelo “Brexit”, os muito atlantistas holandeses não acham graça ao enfraquecimento da NATO.
O “capital” de Wilders é a islamofobia. Prometeu aos eleitores encerrar as mesquitas e escolas corânicas, equipara o Corão ao Mein Kampf, pediu o internamento dos refugiados muçulmanos, propôs-se afastar da Holanda “a ralé marroquina, que torna as nossas ruas perigosas”, e “fazer da Holanda um país para os holandeses”. A sua xenofobia tem laivos de racismo.
Islão e multiculturalismo
A verdade é que muitos holandeses, de todas as classes, olham negativamente os imigrantes, na grande maioria muçulmanos (marroquinos, turcos e indonésios), como uma ameaça ao seu modelo social e à sua cultura. Por sua vez, a maioria dos imigrantes muçulmanos integra-se mal no sistema de valores holandês e adopta um comportamento de defesa da sua cultura e do seu modo de vida. Os seus líderes comunitários consideram a integração como uma ameaça ao seu sistema de valores.
O problema vem de longe. A Holanda, país de acolhimento e tolerância, idealizou um sistema multiculturalista que nunca funcionou e que estalou na viragem do século. Em 2000, o filósofo e colunista Paul Scheffer publicou um ensaio, O Drama Multicultural, em que denunciava as ilusões do modelo holandês de imigração. Foi um choque. Scheffer, militante trabalhista, explicava que “o multiculturalismo é um álibi para se recusar olhar a realidade”. Sublinhava que as desigualdades cresciam entre os holandeses de origem e os imigrantes, ao mesmo tempo que não tinham referências comuns.
“Em nome do direito à diferença, não se ensina a História da Holanda aos filhos dos imigrantes. Não é um gesto de boa vontade. Significa: vós não fazeis parte da nossa sociedade e não partilhais a nossa memória colectiva.”
Em 2001, surge o provocador Pim Fortuyn, um professor universiário, ostensivamente gay, que denunciava o islão como “cultura retrógrada” que “discrimina a mulher, persegue os homossexuais, não reconhece a separação entre religião e Estado e é incompatível com a modernidade”.
Afirmava que a maioria dos imigrantes não aceita partilhar os valores das sociedades em que se instalam. Exigia o encerramento das fronteiras — “O barco está cheio” — mas também a legalização e a integração dos ilegais. O seu partido, Lista Pim Fortuyn, ficou em segundo lugar nas eleições de 2002. Entretanto, Fortuyn fora assassinado dias antes por um “amigo dos animais”.
Este assassínio, seguido do do cineasta Theo van Gogh, outro crítico do islão, em 2004 por um terrorista islâmico, forçou os holandeses a confrontarem-se com a sua política de imigração e com o fracasso do seu multiculturalismo. Entretanto, o 11 de Setembro envenenara o clima, associando o islão ao terrorismo.
Em 2006, emerge a figura de Wilders, que, ao contrário de Fortuyn, é pura e simplesmente xenófobo, ultranacionalista e de extrema-direita.
A imigração não está apenas no centro desta campanha eleitoral. Ela ocupa, desde 2000, o centro do debate político. A Holanda é um dos terrenos de eleição do populismo nacionalista que se espalha na Europa. O problema é a resposta política.
Mark Rutte parece ter escolhido a estratégia análoga à de Sarkozy: retomar alguns temas de Wilders para recuperar votos na extrema-direita. Numa “carta aberta aos holandeses”, justifica o mal-estar “das pessoas de boa vontade” perante os estrangeiros “que recusam adaptar-se”. Convida “os que criticam os nossos hábitos e rejeitam os nossos valores a mudar ou a abandonarem a Holanda. “Se não amais este país, parti.”
O partido de Wilders respondeu: “Mark semeia, Geert vai fazer a colheita.”