Questões prévias a qualquer projecto de eutanásia, entre a medicina e o direito
Um projecto de lei para instituir a “morte antecipada”, assistida e despenalizada deveria ser antecedida deuma alteração da Constituição e do código deontológico da medicina portuguesa.
No debate em curso sobre o “suicídio assistido” e a “eutanásia”, a expressão “morte a pedido” é mais clara do que a expressão “morte assistida”, que agora se banalizou. Poderia pensar-se, por antítese, em “morte sem assistência”. Daí que a expressão “morte assistida” seja ambígua, com uma finalidade eufemística que permite uma recepção indolor. Agora muda-se o título para suavizar ainda mais: “Antecipação da morte”, assim falam os proponentes do projecto de lei do BE. A “antecipação da morte” corresponde ao acto de matar ou de ajudar directamente o doente a matar-se. Os obstáculos à consecução deste desejo fatal são vários e de monta. Podendo coincidir pelo conteúdo com ideias religiosas, o seu fundamento é bem distinto e eminentemente laico.
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No debate em curso sobre o “suicídio assistido” e a “eutanásia”, a expressão “morte a pedido” é mais clara do que a expressão “morte assistida”, que agora se banalizou. Poderia pensar-se, por antítese, em “morte sem assistência”. Daí que a expressão “morte assistida” seja ambígua, com uma finalidade eufemística que permite uma recepção indolor. Agora muda-se o título para suavizar ainda mais: “Antecipação da morte”, assim falam os proponentes do projecto de lei do BE. A “antecipação da morte” corresponde ao acto de matar ou de ajudar directamente o doente a matar-se. Os obstáculos à consecução deste desejo fatal são vários e de monta. Podendo coincidir pelo conteúdo com ideias religiosas, o seu fundamento é bem distinto e eminentemente laico.
A Constituição da República Portuguesa considera o direito à vida inviolável (artigo 24.º), e a integridade moral e física das pessoas inviolável (artigo 25.º). Que hermenêutica rebuscada sobre autonomia e dignidade da pessoa pode reinterpretar o texto constitucional para que o Estado passe a contribuir para a prática institucional da morte? Como dar a volta à Constituição sem a alterar? O álibi para tal solução final teria de ser a medicina, coagida a executar a morte “assistida”, para simular um “acto médico” pelos voluntários “Doutores Morte”. Mas a medicina portuguesa, no seu código deontológico, proíbe a eutanásia. Sendo assim, os praticantes do ofício terão de fazer objecção de consciência ao código deontológico? Como vai a saúde da medicina?
Pense-se, um instante, antes da injecção letal. O doente tem a liberdade de não consentir e não autorizar certos tratamentos, contrariando, por opção sua, soluções médicas e cirúrgicas. Mas não pode ter a autoridade de impor a sua escolha à medicina e de obrigar a remodelar a deontologia médica à força. Quem pode conceber como um acto médico a decisão autónoma do doente de se matar e de exigir que o matem? Os médicos (dois ou três) seriam os conferentes dos requisitos legais (do anteprojecto do Bloco) para dar a ordem para matar? A artificialização da vida pela distanásia (em vez de adequar meios de apoio, encaniçar terapêuticas inúteis) é aqui correspondida na artificialização técnica da morte, seguindo um regulamento cautelosamente macabro para não matar o sobrevivente sem direito legítimo ao exitus instantâneo.
Sendo matéria de direitos, liberdades e garantias, como se verificou pela atribuição à comissão parlamentar respectiva, que teve o encargo nuclear na análise da petição “Direito a morrer com dignidade”, suscita-se uma questão de teor jurídico da maior relevância. Não é a autonomia do requerente que está em causa? Não é o próprio o agente e sujeito da sua vontade? Apenas não consegue consumar o acto. Então, a perícia médica regimental, segundo o projecto em discussão, para avaliar se sim ou não a pessoa pode ser objecto da eutanásia, terá de ser tão-só uma perícia que irá fundamentar a decisão de um magistrado, única autoridade capaz de tutelar um direito pessoal do máximo valor como é a vida. Está em juízo a capacidade de decidir, a autonomia, a capacidade civil em relação ao bem próprio que é a vida. Não pode ser matéria para decisão arbitral do médico ou dos médicos. Como não é nunca em relação a outros bens muito menos importantes, sempre que é a capacidade da pessoa que está em juízo. O acto em causa é jurídico e não médico. A medicina tem apenas o papel de perícia e de execução se o magistrado assim decidir, isto é, confirmar judicialmente a autonomia do requerente.
Um projecto de lei para instituir a “morte antecipada”, assistida e despenalizada deveria ser antecedida de uma alteração da Constituição e do código deontológico da medicina portuguesa. A não ser que se proceda à sonegação tácita de princípios constitucionais e à eutanásia involuntária póstuma da deontologia médica. E teria de ser sempre um acto do foro jurídico para respeitar as leis vigentes e a isenção requerida nesta questão da vida ou de morte antecipada.