As coisas loucas que podem acontecer quando somos pobres

George Saunders retrata a América actual pelo lado do absurdo e partindo do princípio do prazer. O seu território é o das classes pobres cujo sofrimento capta pelo humor, porque só rindo consegue passar a dor da humilhação. Uma conversa a partir de Pastoralia, que acaba de sair em Portugal.

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Que beleza há no conto que levou George Saunders a dedicar-lhe 30 anos de exclusividade? “É a mesma beleza que há no adeus apressado numa estação de comboios.” A resposta sai sem hesitação, voz viva, sotaque que concilia várias geografias dos EUA. “Imagine que teve um fim-de-semana bonito com alguém, vai acompanhar essa pessoa à estação e o comboio chega mais cedo do que o esperado. De repente, há três minutos para dizer tudo, é preciso fazer justiça àquele momento, mas ele já quase passou. É a mesma urgência do conto.”

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Que beleza há no conto que levou George Saunders a dedicar-lhe 30 anos de exclusividade? “É a mesma beleza que há no adeus apressado numa estação de comboios.” A resposta sai sem hesitação, voz viva, sotaque que concilia várias geografias dos EUA. “Imagine que teve um fim-de-semana bonito com alguém, vai acompanhar essa pessoa à estação e o comboio chega mais cedo do que o esperado. De repente, há três minutos para dizer tudo, é preciso fazer justiça àquele momento, mas ele já quase passou. É a mesma urgência do conto.”

Saunders nasceu e cresceu no Texas, estudou em Chicago e no Colorado, vive no estado de Nova Iorque, passa temporadas na Califórnia. Aos 58 anos, publicou seis volumes de contos e novelas e um de ensaios. Neles, traça o perfil dos americanos mais desvalidos, construindo uma paródia do absurdo sobre os medos, as ambições, a falha, a necessidade de ser aceite, fabricando para isso universos alternativos que lhe permitem exacerbar a neurose e ambivalência americanas. É também um exímio imitador de falas e várias vezes o demonstrou ao longo da conversa. Com essa escrita, ganhou prémios, bolsas de génio literário e é um dos escritores mais elogiados pela crítica norte-americana e admirado pelos seus pares.

Esteve, contudo, inédito em Portugal até ao ano passado, altura em que a Ítaca traduziu a colectânea de contos Dez de Dezembro. Agora é a vez da Antígona publicar uma referência do conto norte-americano actual, Pastoralia, original de 2000 que reúne uma novela e cinco histórias escritas entre 1996 e 1999.

George Saunders fala ao telefone a partir da Califórnia em vésperas de apresentar o primeiro romance, Lincoln the Bardo. Os mais cépticos diziam que lhe faltava passar pelo “grande teste” — o do romance. Ele chegou agora, num território diferente daquele que trabalhou no conto. Já não são as classes mais baixas da América contemporânea, mas a morte do filho do Presidente mais amado dos EUA, um romance situado no século XIX. Está lá, no entanto, a América actual, a mesma que aparece no decrépito parque temático de Pastoralia, novela de abertura e a que dá título ao volume. Em 2000, quando saiu nos EUA, muito se escreveu sobre o carácter metafórico desse título. Dezassete anos depois, Saunders refere que o título resultou de um embaraço. “Na altura estava a trabalhar numa empresa onde havia uma máquina de escrever que exigia um produto com o nome ‘pastelia’ ou qualquer coisa assim, e via aquela palavra todos os dias; entrou na minha cabeça. Quando comecei a pensar como é que o livro se poderia chamar, a imagem intrometeu-se e achei que fazia parte da história: Pastoralia enquanto ideia de uma pastoral, dedicada a uma época menos civilizada. Em inglês a palavra refere-se também aos pastores da igreja protestante, mas quando se diz Pastoralia e se pesa no que a história realmente é... Gosto do contraste. Pareceu-me divertido.”

E se uma ideia é divertida, segue-a. É esse o seu princípio: “A minha abordagem artística é intuitiva. Quando começo uma história, tento não ter nenhuma noção sobre o tema porque a minha cabeça não é suficientemente sofisticada para os abandonar se tiver de ser. Sei que se tiver um plano para uma história, ela vai falhar. Há, sobretudo, improvisação. Quando começo, tenho apenas uma noção muito pequena, e geralmente é algo divertido. Então prossigo, tentando seguir aquela energia e lentamente os traços daquilo a que chamamos literatura começam a aparecer.” O tema, a maior ou menor carga política, a sátira social vão ganhando corpo a partir desse impulso: o do prazer ou do embaraço. “Uma vez, estava num centro comercial em Syracuse [onde dá aulas de escrita criativa] e estavam duas raparigas, classe média baixa, a falar num stacatto meio doido cheio de palavrões. Era mais ou menos assim...” Do outro lado da linha ouve-se uma voz nasalada num chorrilho de vernáculos, imitando, à vez, duas vozes femininas. É o escritor a imitar um diálogo imperceptível. “Tentei perceber como é que faziam aquilo e aquilo não parava, uns cinco, dez minutos e eu a fingir que andava por ali a ver coisas só para disfarçar. Era um calão agressivo. Cheguei a casa e tentei imitar na página, recriando um diálogo engraçado a partir da conversa entre as raparigas. A dada altura referiram uma tia com quem viviam e ali estava o enredo. E foi assim que a história começou, comigo atrás de qualquer coisa por uma razão que não entendo bem. Nessa altura suspendo todas as projecções sobre o que pode ser literário; há um tecido orgânico que se expande.” O resultado tornou-se Carvalho do Mar, terceiro conto do livro, a triste história de um homem que trabalha num clube de strip mas não quer mostrar o seu pénis.

Em Pastoralia, um homem e uma mulher trabalham num parque temático decadente a replicar a existência de duas criaturas das cavernas. O modo de comunicar com o exterior é através de um fax. É a partir dali que o homem vai recebendo notícias da mulher e do filho doente. Há ainda um tabuleiro através do qual lhes chegam mantimentos e notas da administração sobre procedimentos e sobre a avaliação dos funcionários, uma cadeia de poderes perniciosa que mimetiza todo o sistema onde um poder se impõe ao outro, reproduzindo, criando tanto a linguagem que o legitima como a que lhe permite resistir. À lupa, o resultado é tão alucinante como reflector da realidade. “Todas as ideias políticas acabam por aparecer, mas adquirem uma expressão mais profunda na minha escrita se acontecerem por acidente”, continua. Em 2000, o conto foi apresentado como uma sátira à sociedade americana. No início deste 2017, a sátira ganhou mais actualidade. “Acho que está a ficar mais como aquele livro do que eu gostaria. Quem me dera ter escrito um livro mais simpático se assim o mundo também ficasse mais simpático.”

Humilhação pessoal

Não é possível dissociar a escrita de Saunders da sua biografia e Pastoralia aparece colado à sua experiência pessoal. Que inclui precariedade, pobreza, medo, opressão, submissão, mas alguma felicidade e uma questão: o que estamos aqui a fazer? “Não pensei nisto na altura, mas cheguei lá mais tarde, à ideia de que ‘o capitalismo destrói a sensualidade do corpo’, uma frase de Terry Eagleton [filósofo e crítico britânico]. Quando escrevi o livro, trabalhava numa empresa de engenharia como dactilógrafo. Eu e a minha mulher tínhamos dois bebés e não tínhamos dinheiro. Eu sentia que as crianças iriam crescer rapidamente e sem dinheiro, iriam sofrer. No nosso país não existe a ideia de nobreza na pobreza, a cultura é a de que a pobreza é uma coisa de que é preciso fugir. Parte de mim resiste a essa ideia, mas não com os meus filhos. Queria protegê-los disso. Tive sorte e consegui esse trabalho. Não pagavam muito, mas era estável e tinha regalias. Senti que aprendi lá muito sobre o século XX. Fiz coisas menos éticas só para manter o meu emprego, o seguro, para manter o barco familiar a flutuar. Foi interessante e ambíguo viver nesse ambiente. Mas também foi um período cheio de ‘amor’ entre colegas. Havia pelo menos uma coisa que nos unia: ninguém estava ali por gostar do sítio.”

Essa ambiguidade está representada na distopia que é Pastoralia. Não há revolta, há passividade. “Sim”, concorda, “as pessoas tentam salvar-se ou safar-se, sem serem malvadas. Há uma esperança estranha. Acho que a palavra-chave é ‘tentar’. Muitas vezes na ficção, no cinema, há um lado negro, vemos pessoas incondicionalmente diabólicas, a tentarem o mal. Nunca conheci essas pessoas. Conheci e conheço pessoas que fazem coisas más perseguindo o bem. Podemos pôr uma pessoa numa situação e o elemento humano surge na extensão daquilo que ela rejeita ou evita. Neste livro, o que mostro é o lado negro através de pessoas que estão a evitar o pior para si mesmas.”

São pessoas comuns em universos paralelos com vidas reconhecíveis. Outros escritores na América retrataram gente assim. Saunders criou o seu caminho em mundos animados por entidades estranhas ao real, o que serve apenas para destacar esse real. “Quando me afasto dos universos alternativos e tento ser realista à la Hemingway ou Raymond Carver, parece que estou a deixar qualquer coisa na mesa; há sempre qualquer coisa em que acredito que não teve hipótese. Gosto de histórias com alguma selvajaria. Para mim, beleza e selvajaria estão próximas, e não consigo atingir isso quando tento ir por um caminho realista. A história perde fulgor. Quero que as minhas histórias tenham um certo grau de energia. Há uma citação bonita da Flannery O’Connor: ‘Podemos escolher sobre o que escrever, mas não podemos escolher o que fazer viver’. Para mim, respeitar a arte é respeitar a força das minhas histórias, saber que há coisas que não posso decidir.”

Hemingway, Carver, O’Connor, mas também David Foster Wallace, Thomas Pynchon... De Foster Wallace, diz: “Às vezes, acho que ele teve acesso à minha mente e está a exportar os meus pensamentos. Hemingway também fez isso. Quando alguém está a ser autêntico, leva as coisas a um registo universal.” São influências que assume. Foi, aliás, a leitura de um artigo sobre a vida de Raymond Carver que o levou a Syracuse, ao curso de escrita criativa do contista e memorialista Tobias Wolff. “Sim, Carver é um dos motivos pelos quais cheguei a Syracuse, li sobre ele na People”, conta, acrescentando que o viu uma vez. “Quando o li, percebi-o como uma ponte para Hemingway, mas ele era Hemingway numa classe social mais abaixo, e mais contemporânea. Isso ressoou em mim. Nesse tempo vivia no Texas, uma vida modesta, pobre. Carver dava-me esperança. Pertencer a uma classe baixa não significava que a literatura tivesse de parar. Revia-me em muitas das suas gírias estilísticas, uma ligação com o estilo de vida estóico de alguém com poucos estudos. Parecia mais autêntico para a minha experiência do que qualquer coisa que lera.”

Destaca um conto de 1983, A Small, Good Thing, a história de Scotty, menino de oito anos que morre depois de ser atropelado enquanto vai para a escola e do modo como isso faz desabar o mundo dos adultos à sua volta. “Adorei, e, tal como muita gente da minha geração, eu imitava Carver, mas nunca o igualando. Foi nessa altura que o universo sobrenatural me atraiu, que senti o apelo do hiper-realista, porque senti que faltava escrever sobre a humilhação sofrida pela pobreza na América, e que muita da história desse sofrimento passava pelo lado cómico de ter poucos recursos. Quando escrevi sobre o parque temático de Pastoralia, senti-me Carver e Hemingway [risos], mas há ali uma natureza meio louca, alucinada, que paradoxalmente me parece mais realista. Há coisas tão loucas e embaraçosas que podem acontecer quando somos pobres.” Tais como? “Uma vez, convidei uma miúda para ir lá a casa e estávamos no sofá e de repente entra um tipo, acho que amigo do meu cunhado. Estava bêbado, empurrou a porta, dirigiu-se a um canto da sala e começou a mijar, e eu ali com a miúda simpática a assistir. Escrever essas coisas de maneira realista nunca magoa tanto. Há uma tensão que exige uma abordagem extraordinária.”

Essa abordagem permite-lhe que o absurdo seja mais efectivo. “É curioso estar a fazer distinção entre o absurdo e o não-absurdo num momento de repouso.” Repouso? “A minha vida agora não é absurda, é óptima”, confessa. Já não é operário, é um autor prestigiado que vive da literatura. “Mas podemos sempre entrar num território do absurdo. Para mim, a ficção é só uma maneira de lembrar que parte da minha mente é banal e burguesa. Mas viver uma situação boa agora não significa que a bondade prevaleça no universo. É quase como uma oração: é preciso lembrar-me que a desgraça continua real, mesmo que não seja real para mim neste momento.”

A nova vida afectou a nova escrita, mas o efeito das humilhações que sofreu “não desaparece facilmente”. “Tenho mais dinheiro, tenho um lugar de professor, filhos que cresceram maravilhosamente, um casamento feliz. Isso não erradica o resto, mas o resto também não erradica isto. Se o trabalho de um escritor é ficar o mais perto possível de uma ideia verdadeira do mundo, é preciso aceitar a boa sorte da mesma maneira que se aceita a má sorte. O que é que a mente humana faz sob a influência da boa sorte? Talvez nada de jeito, talvez fique preguiçosa ou com excesso de confiança.” Fazer reportagem permite-lhe estar em contacto com o mundo, não se fechar na boa sorte. Passar dez dias anónimo num campo de sem-abrigo em Fresno, Califórnia, percorrer as fronteiras do México com o Texas e a Califórnia a ver como é feito o patrulhamento para falar da imigração, ou estar em cinco comícios de Donald Trump numa reportagem para a New Yorker. “É bom ir para essas histórias com alguma ideia do mundo e depois a história depressa nos bater e surpreender e desacreditar todas as nossas ideias; confundir-nos, o que acho estimulante.” E o que é que aprendeu de Trump nesses comícios que ajude a perceber o que a América está a viver? “Nada. Muita gente está a tentar perceber como isso aconteceu. A pergunta era: ‘Como podiam estar do lado dele?’ E agora é: ‘Como resistir?’ Continuo a dizer que se o meu trabalho, enquanto escritor, é entender o meu país, então falhei.”­­