A Cidade Global é como um centro comercial do século XVI
São 250 peças e muitas delas são artigos de luxo. A Cidade Global abre quinta-feira no Museu de Arte Antiga e mostra Lisboa como a capital multicultural de um império comercial a partir do que se podia comprar – e ver – numa das suas ruas. E nela cabem a China, o Japão, a Índia, o Brasil…
A comissária Annemarie Jordan Gschwend propõe que se passeie pela exposição A Cidade Global – Lisboa no Renascimento, que é esta quinta-feira inaugurada no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), como quem percorre uma rua agitada e ruidosa do século XVI, cheia de lojas, imaginando o rio ali ao pé, com o rinoceronte do rei a tomar banho.
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A comissária Annemarie Jordan Gschwend propõe que se passeie pela exposição A Cidade Global – Lisboa no Renascimento, que é esta quinta-feira inaugurada no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), como quem percorre uma rua agitada e ruidosa do século XVI, cheia de lojas, imaginando o rio ali ao pé, com o rinoceronte do rei a tomar banho.
De um lado e do outro porcelanas e animais exóticos, têxteis de alta qualidade, cofres de madeira e madrepérola, mapas e marfins exuberantes. “Neste centro comercial do século XVI não podíamos comprar malas Louis Vuitton de milhares de libras, mas podíamos levar para casa, se tivéssemos muito dinheiro, um papagaio ou um tucano do Brasil, marfins da Serra Leoa e livros de botânica… É que na Rua Nova dos Mercadores, na Lisboa do Renascimento, havia 11 livrarias”, lembra, enquanto guia o PÚBLICO numa breve visita à exposição, na véspera da conferência de imprensa em que A Cidade Global (até 9 de Abril) foi apresentada.
“Todas as obras [aqui] expostas foram creditadas pela documentação ou pela comunidade científica”, disse ontem no MNAA, em Lisboa, o seu director, António Filipe Pimentel, numa intervenção dominada pela polémica criada por dois artigos publicados a 17 de Fevereiro no jornal Expresso, que procuram pôr em dúvida a autenticidade de duas das pinturas expostas: O Chafariz d’El-Rey (c.1570-1580) e Vista da Rua Nova dos Mercadores (1570-1619).
Pimentel rejeitou as “suspeitas” levantadas pelo semanário num texto de duas páginas em que apresentou os argumentos das comissárias da exposição, da equipa do museu e de outros historiadores de arte. E no fim acrescentou: “Nunca foi nosso objectivo reduzir esta exposição que tanto trabalho nos deu a uma discussão sobre duas pinturas que estão documentadas desde o século XIX, mas também não vamos fugir a ela. Não temos nada a esconder.”
Montar esta exposição foi uma “operação complexa” que envolveu 80 emprestadores portugueses e estrangeiros, entre eles instituições de grande prestígio como a Biblioteca de Leiden e os museus Britânico e do Prado. Divididas por seis núcleos, as 250 peças – pinturas, desenhos, mapas, livros, instrumentos de navegação, porcelanas, jóias, sedas preciosas, animais exóticos empalhados e até uma cruz processional feita com aquilo que à época se julgava ser um corno de unicórnio com eventuais propriedades mágicas – traçam o retrato de uma capital a que chegavam artigos vindos de todo o mundo.
“Esta cidade tinha o mundo cá dentro e andar pela Rua Nova dos Mercadores, que era o centro do comércio, mostra isso mesmo. Não há muitas capitais europeias do Renascimento onde pudéssemos comprar araras, macacos e civetas [africanas], onde houvesse dedais do Ceilão [actual Sri Lanka] para vender, onde a variedade de loiças da China e do Japão fosse tão grande como aqui”, diz Gschwend, que partilha com a historiadora Kate Lowe o comissariado de A Cidade Global e a autoria do livro que lhe serve de ponto de partida, The Global City – On the Streets of Renaissance Lisbon.
Outros anjos
O entusiasmo das duas comissárias é evidente e cresce à medida que percorrem os núcleos da exposição, saltando de peça em peça para chamar a atenção para este ou aquele detalhe. No primeiro, onde está a agora polémica pintura que o pintor Dante Gabriel Rossetti terá comprado em 1886, Vista da Rua Nova dos Mercadores, e O Chafariz, que já no final dos anos 1990 gerara controvérsia, há uma impressionante vista panorâmica de Lisboa (c.1570-1580) que pertence à Biblioteca de Leiden e que está agora a ser exposta pela segunda vez em Portugal. Reconhecem-se inúmeras ruas e monumentos, mas muita coisa mudou com o terramoto. O desenho é tão pormenorizado que, entre os visitantes, é bem provável que alguém diga que consegue localizar a sua casa na colina e que algumas das oliveiras representadas ainda lá estão.
Quando se passa ao núcleo dedicado a África, é o cruzamento de culturas e os documentos que impressionam. Há uma carta escrita em Lisboa por um italiano, Filippo Sassetti, em 1578, em que é visível a diversidade étnica dos escravos da cidade. Nela, explica Kate Lowe, este mercador de Florença descreve-os minuciosamente, falando das desvantagens e vantagens de cada um: aos brasileiros, por exemplo, acha-os teimosos e nos chineses reconhece uma certa sofisticação na hora de cozinhar.
“Há muitos relatos escritos sobre Lisboa que nos dão boas descrições da cidade, cheias de pormenores, sobretudo os italianos, que eram muito fofoqueiros, mas também os alemães e os flamengos”, diz Gschwend.
Noutra vitrine, um saleiro do Benim testemunha a mistura de culturas e saberes que a exposição sublinha – tem um soldado vestido à europeia ladeado por duas figuras estranhíssimas, "possivelmente espíritos”, e são visíveis os seus genitais, aponta Lowe: “Estas figuras têm asas de penas, como os anjos ocidentais, mas têm género e os nossos não.”
Entre os módulos que mais atrairão os visitantes estará certamente o dedicado aos “animais globais” – aqueles que a Expansão portuguesa apresentou à Europa – e onde se pode ver um tatu e até um rinoceronte, a fazer lembrar o que Filipe II tinha e que era uma verdadeira atracção.
Uma casa típica
A fechar a exposição, um núcleo curioso que pretende evocar aquele que seria o recheio típico de uma das casas abastadas da Rua Nova (ao nível térreo havia lojas, mas os andares superiores tinham apartamentos com rendas muito altas, explica Hugo Miguel Crespo, investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa), a de Simão de Melo de Magalhães, capitão de Malaca.
Sedas, cofres, móveis, porcelanas e até uns brincos que podem ter pertencido à filha mais nova de D. Manuel I. “As peças que aqui temos não são as do Simão de Melo, claro, mas, de acordo com o inventário do recheio da sua casa, andarão muito perto”, diz Crespo, que também escreve no livro das comissárias e neste catálogo, referindo-se ao documento descoberto por um colega de investigação, Pedro Pinto, e por ele transcrito. O inventário permite saber quanto custavam estes artigos de luxo e de onde vinham, com precisão (quando fala da origem não diz apenas Índia e sim Goa ou Gujarate).
“Este capitão tinha o mundo em sua casa, porque viajou pelo mundo. Malaca era um dos centros mais importantes do comércio. Tinha até acesso a coisas do Japão e reuniu um conjunto impressionante de porcelanas da China, com mais de 300 peças que seriam para usar no dia-a-dia.”
Da casa de Simão de Melo, capitão de Malaca, Lisboa parece mesmo uma cidade global. O historiador Diogo Ramada Curto, que tem dedicado boa parte dos seus estudos ao imperialismo e ao colonialismo, rejeita por completo esta visão de uma capital cosmopolita e miscigenada, que habitualmente se associa ao tempo de D. Manuel (diz, num dos referidos artigos do Expresso, que esta imagem resulta de uma “cartilha neo-luso-tropicalista”) e defende que é preciso debatê-la. As duas pinturas que estão agora a agitar as águas entre os historiadores podem servir de pretexto, acrescenta ao PÚBLICO: “Porque é que os quadros [a Vista e O Chafariz] justificam a ideia de que Lisboa foi uma cidade global, multicultural e miscigenada? À primeira vista tal acontece por se representarem no quadro do Chafariz uma série de africanos: uns em funções profissionais, a acartar água e outras coisas; outros a dançar e a tocar, muito contentes; outros a representar uma ascensão social ao mundo da cavalaria ou um mundo de pernas para o ar; e ainda o que representa uma visão mais ou menos carnavalizada, com um balde de dejectos enfiado na cabeça. Mas como é que se passa deste elenco de representações, mais ou menos possíveis de imaginar à luz dos textos da época, para um ciclo em que se postula que Lisboa era uma cidade global?”
Annemarie Jordan Gschwend responde: “É claro que se podem defender outras leituras da cidade renascentista e do império de que é capital. Os documentos estão à disposição de todos para serem estudados e interpretados. Para mim ela é assim global, misturada, e esta exposição mostra isso.”
Na conferência de imprensa de esta quarta-feira o director do MNAA avançou que a exposição poderia ir até ao Porto, mas o PÚBLICO contactou a directora do Museu Nacional de Soares dos Reis, Maria João Vasconcelos, que admitiu que a hipótese de receber A Cidade Global chegou a ser considerada, mas que, “com muita pena”, a Direcção-Geral do Património Cultural e o museu não tinham conseguido reunir as condições financeiras para o fazer. Com Sérgio C. Andrade