Esta exposição não se reduz a duas pinturas, mas só se fala delas

Uma polémica à volta de duas pinturas nas vésperas da abertura de uma grande exposição só pode ser muito boa ou muito má em termos de públicos. Procurámos compreender os argumentos dos dois lados. É ou não é autêntica a pintura da Rua Nova dos Mercadores? Foi a que Rossetti comprou, ou não?

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Daniel Rocha

A exposição A Cidade Global que é inaugurada esta quinta-feira no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) parece destinada a enfrentar obstáculos. Primeiro foram os adiamentos sucessivos, que acabaram por reduzir a um mês e meio uma exposição que deveria ter quatro. Depois, dois artigos publicados no Expresso no passado sábado procuraram pôr em causa a autenticidade de duas das pinturas incluídas nesta mostra sobre a Lisboa do Renascimento, uma delas – a que representa a Rua Nova dos Mercadores e que no século XIX terá sido dividida em dois painéis – inédita em Portugal.

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A exposição A Cidade Global que é inaugurada esta quinta-feira no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) parece destinada a enfrentar obstáculos. Primeiro foram os adiamentos sucessivos, que acabaram por reduzir a um mês e meio uma exposição que deveria ter quatro. Depois, dois artigos publicados no Expresso no passado sábado procuraram pôr em causa a autenticidade de duas das pinturas incluídas nesta mostra sobre a Lisboa do Renascimento, uma delas – a que representa a Rua Nova dos Mercadores e que no século XIX terá sido dividida em dois painéis – inédita em Portugal.

Será uma fraude, assim como O Chafariz d’El-Rey (c.1570-1580), outra pintura que podemos ver no primeiro núcleo de A Cidade Global? Terá sido pintada no século XX “à maneira antiga” como defende um dos investigadores ouvidos pelo semanário, João Alves Dias? Ou tudo isto não passa de uma “polémica vazia” “com pouco ou nenhum fundamento”, como diz o historiador de arte Vítor Serrão?

O PÚBLICO procurou ouvir os dois lados neste debate que chegou às páginas dos jornais nas vésperas da inauguração da exposição do MNAA sob a forma de um ensaio do historiador Diogo Ramada Curto em torno de um livro publicado no final de 2015 – The Global City – On the Streets of Renaissance Lisbon (Paul Holberton Publishing), escrito pelas duas comissárias da mostra lisboeta, Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe – e de um artigo em que se recupera uma controvérsia com quase 20 anos e que diz respeito à datação d’O Chafariz d’El-Rey.

O que tem esta obra em comum com a vista da principal artéria comercial da Lisboa pré-terramoto? O que leva a que alguns historiadores falem delas como fazendo parte de um mesmo ciclo de representação da cidade e outros a dizer que nada têm a ver uma com a outra?

Já se sabe que a atribuição de datas, autores e filiações a obras de arte, mesmo quando o seu valor é essencialmente documental e não plástico (será este o caso), depende de muitos elementos, da análise material (pigmentos, dendocronologias, reflectografias e outros exames laboratoriais) ao estudo exaustivo nos arquivos, e está longe de ser uma ciência exacta liberta do factor interpretação, mas este parece ter tendência a tornar-se num estudo de caso português. 

João Alves Dias, investigador da Universidade Nova que se tem dedicado ao Portugal do século XVI, considera, em declarações ao Expresso, que a Vista da Rua Nova dos Mercadores identificada como tal por Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe em 2009 entre o espólio do pintor pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), que a teria atribuído erradamente à escola do mestre espanhol Diego Velázquez (1599-1660), é uma “continuação” do Chafariz e, “porventura, do mesmo artista”. 

O investigador defende até que há uma figura que parece sair do quadro que o historiador de arte Vítor Serrão encontrou num antiquário de Madrid em 1997 e que aterra no da Rua Nova. E depois detalha-se nos pormenores de indumentária de algumas das figuras do Chafariz, dizendo, por exemplo, que “não há conhecimento de que se tenha dado a Ordem de Santiago a um negro, muito menos no século XVI”.

Nada mais falso, de acordo com Serrão e Joaquim Caetano, também historiador de arte e conservador de pintura do MNAA. “O argumento do cavaleiro é muito fraco porque houve negros nobilitados em Portugal com ordens militares no séculos XVI e estão documentados. Basta pensar na embaixada do Congo”, diz Serrão, especializado em pintura portuguesa dos séculos XVI, XVII e XVIII e director do Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, acrescentando que a roupa que as múltiplas figuras vestem é consistente com as que se usariam na Lisboa da última década do século XVI. Caetano, por seu lado, identifica um dos homens de origem africana que terão recebido precisamente a Ordem de Santiago – “chamava-se João de Sá Panasco e era o bobo de D. João III”, tendo-lhe sido concedida tal honraria entre 1550 e 1557.

Erro infantil

Diogo Ramada Curto, académico que tem sobretudo como áreas de investigação o imperialismo e o colonialismo (coordenou obras como A Expansão Marítima Portuguesa, 1400-1800 e Estudos sobre a Globalização), não se atenta na análise da pintura – não é um historiador de arte, faz questão de sublinhar, e por isso apoia-se em documentos – e usa como principal argumento contra a teoria de Gschwend-Lowe a impossibilidade de Rossetti ter confundido a Vista da Rua Nova dos Mercadores com uma obra da escola de Velázquez.

“É, de facto, difícil aceitar que a Inglaterra de meados do século XIX, mais concretamente os círculos do [crítico de arte John] Ruskin e dos pintores pré-rafaelitas ignorassem a obra de Velázquez. É tão difícil que parece um erro infantil cometido, hoje, por vários que se dedicam à história de arte”, diz em resposta ao PÚBLICO. “[O historiador de arte] Francis Haskell demonstrou como operavam em Inglaterra, precisamente em meados do século, os coleccionadores de antigos mestres, bem como o seu grau de conhecimentos aprofundados. Sabe-se, também, que Ruskin considerava Velázquez um dos grandes mestres de sempre da pintura. E os próprios termos das cartas de Rossetti, que traduzi na íntegra para o jornal Expresso, não confirmam a relação estabelecida por Annemarie Jordan entre o quadro que Rossetti comprou e que se caracterizava pela ‘grandeur of landscape’ e os quadros da Rua Nova.”

Joaquim Caetano não tem qualquer dificuldade em aceitar que Rossetti a colocasse sob influência do mestre espanhol (“uma grande paisagem da Escola de Velázquez, com cerca de 120 figuras [mas] não do próprio V, o grande”, escreve o pintor e poeta). “Ele terá olhado para esta pintura e identificado, à partida, três elementos que associava imediatamente à Europa do Sul: pessoas vestidas de preto, negros e edifícios com colunas." Daí a dizer que é da escola de Velázquez vai um saltinho. "Em meados do século XIX, em Inglaterra, sabia-se ainda muito pouco sobre os mestres espanhóis. Rossetti ia atribuir esta pintura a quem? Zurbarán? É ainda mais diferente. Murillo? Mais improvável ainda. E é preciso ver que a expressão ‘Escola de Velázquez’ significava algo de muito diferente do que significa hoje”, diz ao PÚBLICO, acrescentando que, na época, se contavam pelos dedos de uma mão os livros com imagens de pintura espanhola a circular pela Europa.

“Rossetti interessava-se muito pelos mestres antigos, não só espanhóis, e tinha um bom olho, mas pode facilmente ter-se enganado porque Inglaterra só começou a interessar-se por eles por volta de 1850 e o conhecimento estava ainda a formar-se”, defende a comissária Annemarie Gschwend.

Uma fuga apressada

Originalmente comprada para a casa de Rossetti em Londres, em 1866, a Vista da Rua Nova dos Mercadores terá sido levada depois para Kelmscott Manor, em Oxfordshire, a mansão que o pintor dividia com o amigo e também artista William Morris na década de 1870, e de onde, segundo Gschwend, terá fugido à pressa. Motivo? Morris terá decidido que era altura de pôr um ponto final na relação entre Rossetti e a sua mulher, um dos modelos/musas de ambos: “Quando li sobre a saída de Rossetti de Kelmscott Manor imaginei-o sempre a correr, quando Morris, farto de que fosse amante da sua mulher, Jane, estava para chegar [risos], deixando tudo para trás e criando uma espécie de cápsula do tempo”, diz a investigadora num português com sotaque do Brasil que denuncia a sua proximidade a Portugal (tem casa na linha do Estoril e estuda há décadas as monarquias europeias, dando particular atenção às ibéricas e, sobretudo, a Catarina da Áustria, mulher de D. João III). 

A historiadora passou quase um ano e meio a traçar o rasto de Rossetti que o liga à Vista da Rua Nova e acabou por descobrir o antiquário londrino onde a terá comprado, George Love. “Esta obra está documentada como pertencendo a Rossetti desde a década de 1860… Eu só acredito na investigação histórica que é feita com base em documentos, em papéis, não naquela que é feita com palpites e intuições. Claro que há sempre que interpretar as fontes documentais e que isso pode levar a leituras diferentes, mas para isso elas têm de lá estar.”

No artigo do Expresso, Ramada Curto escreve, por seu lado, que não lhe parece “correcto que a questão da autenticidade dos quadros em causa nunca seja abordada no livro” de Gschwend e Lowe e que as autoras decidam ignorar a controvérsia que rodeou O Chafariz no final dos anos 1990. “As duas pinturas têm sido propostas por vários estudiosos como estando relacionadas, até mesmo como fazendo parte de um ciclo de representação iconográfica sobre Lisboa”, diz (entre estes especialistas está Vítor Serrão).

Gschwend e Lowe, que consideram que a Vista da Rua Nova será de um autor flamengo desconhecido e produzida algures entre 1570 e 1619, defendem que nada tem a ver com O Chafariz e garantem não estar interessadas em polémicas que parecem querer reduzir A Cidade Global a uma pintura que, mesmo tendo “um imenso valor iconográfico e de testemunho”, é apenas uma entre as “250 peças fantásticas” agora reunidas no MNAA, mas nem por isso fogem a perguntas. Por que não são legítimas as dúvidas de Ramada Curto em relação ao facto de esta pintura poder não ser a que Rossetti comprou?

Entre as fontes documentais que Gschwend cita para atestar a autenticidade da Vista da Rua Nova, que hoje continua em Kelmscott Manor, propriedade da Sociedade dos Antiquários de Londres, e da sua ligação ao pré-rafaelita está um artigo de Julia Dudkiewicz, publicado no British Art Journal em 2015, já depois de sair o livro das comissárias, em que a autora revela o testamento de May Morris, filha de William Morris e herdeira da casa senhorial que o pai dividiu com Rossetti. A ele está anexada uma lista de 220 objectos com descrições que englobam as suas proveniência e em que pode ler-se: “Dois quadros com cenas de uma cidade, parte das coisas de D.G.R..”

“Que os quadros estejam em Kelmscott Manor e tenham pertencido à filha de Morris, como prova Dudkiewicz no seu artigo, nunca foi posto em causa. O que deve ser posto em causa é a sua compra, enquanto ‘grande paisagem’ da escola de Velázquez, por parte de Rossetti. Presumir que este confundia alhos com bugalhos e, por isso, poderia julgar que os quadros fossem da escola de Velázquez é um erro crasso”, insiste Ramada Curto.

Vítor Serrão confia no trabalho das comissárias e dos restantes autores do seu livro (investigadores como Hugo Miguel Crespo e Pedro Pinto), que descreve como “excelente e interdisciplinar”, tendo ainda o mérito de revelar uma pintura “com um valor iconográfico extraordinário”: "Não tenho dúvidas de que é do XVI e que, embora fraca e rudimentar do ponto de vista plástico, feita por alguém que muito provavelmente não é um pintor, vale como documento altamente revelador”, revelando-se uma “fotografia” cheia de detalhes da vida quotidiana, acrescenta o historiador.

O seu autor, uma espécie de urban sketcher de há 400 anos, contribui para a imagem de Lisboa como “capital excêntrica e exuberante de um império miscigenado, com gente dos quatro continentes”. Uma imagem, sublinha Serrão, que é contrária à tese de Ramada Curto, “muito crítica em relação a esta narrativa que enaltece Lisboa como centro de um mundo global”: “Diogo Ramada Curto é um historiador seriíssimo e a leitura que faz deste período é legítima, defensável. O que não é defensável é que não se reconheça o valor documental destas pinturas.”

Além disso, conclui Serrão, dirigindo-se à teoria de Alves Dias de que são falsificações do século XX, “ninguém teria informação suficiente para fazer ‘à maneira de’ com este detalhe, simplesmente porque há aqui muita coisa nova, muita coisa que não se sabia sobre esta Lisboa”.

Têm opiniões diferentes em relação a estas obras, mas tanto Serrão como Ramada Curto sugerem agora mais análises materiais para tirar as teimas. “Seria bom que tanto a Rua Nova como O Chafariz voltassem ao laboratório”, diz o primeiro. “Também defendo que tais provas [laboratoriais] terão sempre de ser acompanhadas de uma interpretação que seja consistente do conteúdo e da forma de tais pinturas”, acrescenta o segundo, sugerindo outras obras com as quais podem ser comparadas.

Trata-se de "voltar" ao laboratório porque já foram ambas analisadas. O Chafariz nos anos 1990, antes de ser comprada pelo empresário Joe Berardo; a Vista da Rua Nova dos Mercadores antes de ser intensamente restaurada por Ruth Bubb, uma especialista de Oxford, e de ser exposta na Suíça, em 2010.

O director do Museu Nacional de Arte Antiga, António Filipe Pimentel, não afasta a possibilidade de novos estudos, mas diz que é preciso autorização dos proprietários (no caso da segunda, a Sociedade de Antiquários de Londres) e ponderar muito bem: "Temos de avaliar primeiro se podemos ir mais longe nas análises laboratoriais, se as obras permitem, se os novos exames são capazes de trazer informação relevante."

Notícia corrigida às 17h20: O historiador Diogo Ramada Curto não diz que a Vista da Rua Nova dos Mercadores não pertenceu a Rossetti, diz apenas que o pintor pré-rafaelita não cometeria o erro de a atribuir à escola de Velázquez