O racismo deve ser punido com multas pesadas ou com penas de prisão?

Proposta de lei do Governo prevê multas até 8400 euros. Código Penal contempla prisão, mas a maioria das queixas não passa do papel.

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Manifestação em frente a Assembleia da República depois de agressões da polícia e insultos racistas denunciados por jovens da Cova da Moura Nuno Ferreira Santos

Dois dias depois de a nova proposta de lei do Governo de combate à discriminação racial e à xenofobia ter entrado na Assembleia da República, o SOS Racismo organiza um debate na biblioteca do Parlamento para discutir a legislação e apresentar sugestões.

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Dois dias depois de a nova proposta de lei do Governo de combate à discriminação racial e à xenofobia ter entrado na Assembleia da República, o SOS Racismo organiza um debate na biblioteca do Parlamento para discutir a legislação e apresentar sugestões.

Deve a punição do racismo tender para as contra-ordenações com multas mais pesadas ou para sanções mais duras com a sua criminalização e a aplicação de penas de prisão? O SOS Racismo, uma das mais antigas organizações não-governamentais de combate a este fenómeno, defende que a criminalização é o caminho dissuasor mais eficaz.     

Esta quarta-feira, a organização lança o livro Racismo e Discriminação: a lei da impunidade com a socióloga Silvia Rodríguez Maeso, especialista em racismo da Universidade de Coimbra, com Mamadou Ba, do SOS Racismo e dirigente do Bloco de Esquerda, e com os deputados Teresa Caeiro (CDS, vice-presidente da Assembleia da República) e Pedro Bacelar de Vasconcelos (PS, presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias).

O livro faz um balanço da lei anterior, que tem quase 20 anos. O debate irá abordar também a nova proposta do Governo, que define que o racismo e a xenofobia serão punidos com multas que podem ir até aos 4210 euros, no caso de ser cometido por indivíduos, e até 8420 euros, se o for por pessoas colectivas. Prevê também que a vítima tenha direito a indemnização.

Alteração do Código Penal?

A crítica do SOS Racismo ao novo diploma centra-se no facto de colocar demasiada enfâse nas multas e de alargar os casos em que estas podem ser aplicadas: ao fazê-lo, está a diminuir as hipóteses de quem se queixa de racismo seguir a via do processo-crime, defende. “A nossa proposta é que devia haver uma alteração do Código Penal que pudesse tipificar os crimes de racismo”, diz Mamadou Ba, um dos oradores da sessão, e co-autor do livro.

O Código Penal (CP) prevê prisão para actos de violência, difamação, ameaças, fundação de organizações de propaganda que incitem ao ódio ou discriminação, mas a sua aplicação prática tem sido reduzida, segundo Mamadou Ba. Falta-lhe, por exemplo, definir o que é racismo, como faz a actual proposta de lei do Governo em relação à discriminação, onde são elencadas várias práticas. 

O PÚBLICO pediu dados ao Ministério da Justiça sobre o número de condenações por racismo nos últimos 20 anos, mas até à hora do fecho desta edição não foi possível obtê-los. Esta compilação era, de resto, uma recomendação do Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) na sua última revisão em Novembro. No livro do SOS Racismo publicam-se números: de 2000 a 2014 houve 248 processos de contra-ordenação, e apenas nove condenações efectivas. Isso mostra os “poucos casos em que as sanções foram eficazes ou dissuasivas”. Segundo dados do Observatório das Migrações, entre 2005 e 2015 foram recebidas pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) 759 queixas por discriminação, mas apenas 225 terminaram em processos de contra-ordenação e, desses, apenas 20 acabaram em condenação. É raro virem a público casos de condenações em tribunais. O caso mediático mais recente foi o do skinhead Mário Machado. 

Por seu lado, a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade (SECI), que coordenou o processo, defende, através de email, que “o que este diploma faz é alargar os poderes de intervenção em matéria contraordenacional, garantindo essa protecção alargada por via da responsabilidade civil, para quaisquer práticas discriminatórias não tipificadas como contraordenação”.

Mas para Mamadou Ba a questão de fundo é que o racismo é encarado em Portugal como opinião e visto como uma questão isolada, quando é uma questão estrutural e um crime, afirma. “É preciso perceber que o racismo não é um debate moral, é uma questão política e cultural. Alguém que é discriminado por causa da raça sofre um atentado à sua dignidade. É necessário criar as condições para que deixe de existir. As pessoas têm que perceber que há limites que não podem ser transpostos, há valores invioláveis.”

Dados fiáveis

Silvia Rodríguez Maeso, investigadora espanhola que desenvolve o projecto O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e legislação antidiscriminação, também coloca a questão da perspectiva do racismo estrutural e da forma como é discutido na sociedade portuguesa. Por um lado, a tabela das condenações é muito baixa, por outro, mesmo quando existe, não está a ser feito um diagnóstico do padrão de comportamento deste tipo, e há uma inoperância na forma como as entidades seguem os casos, analisa. Além disso, é difícil transformar os crimes em casos jurídicos, sublinha, até porque isso exige recursos. Silvia Maeso critica ainda a falta de independência política de entidades como a CICDR que analisam as queixas e que deveriam publicar relatórios e estatísticas anuais com “dados fiáveis”. “Não há vontade política de discutir o racismo como processo estrutural que afecta direitos fundamentais das populações e a vida de muitas pessoas”.

Para Mamadou Ba, também dirigente do Bloco de Esquerda, o racismo “é tabu em Portugal” e isso “faz com que o legislador actue com alguma timidez”. “A actuação “é tão insuficiente que o resultado na prática é ineficaz. Temos 20 anos desta lei e não há nenhum agente da autoridade condenado por ela”, acrescenta, mesmo com os casos vindos a público, como o que terá envolvido agressões de agentes policiais na esquadra de Alfragide a habitantes do Bairro do Alto da Cova da Moura, em 2015.

Mas esta organização não está isolada na crítica à anterior legislação: também Pedro Bacelar de Vasconcelos reconhece que a experiência da aplicação da lei “não é positiva”, e essa opinião decorre da análise dos dados sobre queixas e o seu desfecho. “Só por si justifica uma reflexão sobre o combate à discriminação”, diz ao PÚBLICO. “A experiência diz que a aplicação da lei foi demasiado benevolente. A solução não é torná-la mais drástica mas saber porque foi tão condescendente a sua aplicação e procurar, ao nível da revisão, as melhores medidas”, responde.

Já Teresa Caeiro considera que o CP e a lei da discriminação cobrem as questões do racismo. “Portugal não tem descuido em relação às questões do racismo”, afirma a deputada. “A própria Constituição proíbe a discriminação”, afirma. “Claro que há problemas, podemos fazer mais, através da igualdade de oportunidades de acesso ao mercado de trabalho e práticas de integração, mas como portuguesa não tenho vergonha das nossas leis”, afirma.

O Alto Comissariado para as Migrações não quis comentar o novo diploma, remetendo a resposta para a tutela, a SECI.