Fisco deixou sair 10.000 milhões para offshores sem vigiar transferências
Conjunto de transferências realizadas entre 2011 e 2014 comunicadas pelos bancos não foram alvo de controlo pelo fisco e estavam omissas das estatísticas. Inspecção de Finanças averigua o caso.
O fisco recebe todos os anos informação dos bancos a identificar, uma por uma, as transferências de dinheiro realizadas a partir de Portugal para as contas sediadas em paraísos fiscais, mas uma enorme quantidade de fundos passou ao lado do controlo da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nos últimos anos, o que já levou o Ministério das Finanças a dar ordem à Inspecção Geral de Finanças (IGF) para averiguar o que se passou.
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O fisco recebe todos os anos informação dos bancos a identificar, uma por uma, as transferências de dinheiro realizadas a partir de Portugal para as contas sediadas em paraísos fiscais, mas uma enorme quantidade de fundos passou ao lado do controlo da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nos últimos anos, o que já levou o Ministério das Finanças a dar ordem à Inspecção Geral de Finanças (IGF) para averiguar o que se passou.
Em causa estão transferências de quase 10.000 milhões de euros realizadas durante quatro anos (de 2011 a 2014) e que não foram nesse momento alvo de qualquer tratamento por parte do fisco, embora tenham sido comunicadas à administração fiscal pelas instituições financeiras, como a lei obriga. O Ministério das Finanças confirmou ao PÚBLICO que as divergências e as “omissões” foram detectadas quando, entre finais de 2015 e o início de 2016, foi “retomado o trabalho de análise estatística e divulgação” dos valores das transferências para os centros offshores e os chamados “territórios com tributação privilegiada”.
Foi durante esse trabalho que, segundo o Ministério das Finanças, foram detectadas “incongruências com a informação relativa aos anos anteriores, que levaram o actual Secretário de Estado [dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade] a determinar à AT que fossem esclarecidas tais incongruências e apurada a sua origem”.
Em 2010, por ordem do então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Sérgio Vasques (último Governo de José Sócrates), a publicação destas estatísticas passou a ser obrigatória e, nesse ano, foram divulgados valores relativamente às transferências de 2009. Mas depois disso, nos anos em que Paulo Núncio foi secretário de Estado, as estatísticas não foram publicadas no Portal das Finanças, o que só veio a acontecer em Abril de 2016, quando o seu sucessor, Fernando Rocha Andrade, mandou divulgar os dados de 2014 e os números dos anos anteriores que estavam em falta.
Mas os valores publicados nessa altura não coincidem com os números que entretanto, oito meses depois, foram actualizados. Ao confrontar as últimas estatísticas, o PÚBLICO detectou uma discrepância muito significativa entre os valores ali enumerados e os montantes publicados pela AT em Abril, diferença que, ao ser questionado pelo PÚBLICO, o ministério das Finanças confirmou. Se nos primeiros ficheiros o fisco dizia que tinham sido enviados 7162 milhões de euros para offshores de 2011 a 2014, agora, o valor contabilizado é mais do dobro: são 16.964 milhões de euros, uma diferença superior a 9800 milhões.
Impostos perdidos?
Confrontado com uma divergência de números tão significativa, o ministério liderado por Mário Centeno adiantou que entre 2011 e 2014, houve “20 declarações apresentadas por instituições financeiras que não foram objecto de qualquer tratamento pela AT”.
A Declaração de Operações Transfronteiras (conhecida por declaração Modelo 38) é o documento que, até ao final de Julho de cada ano, os bancos têm de enviar ao fisco a identificar essas transferências (indicando informações como o valor das transferências, o número de identificação fiscal da empresas ou da pessoa que ordenou a operação, ou o código do país para onde o dinheiro foi enviado).
A omissão estatística dos 9800 milhões de euros está relacionada com aquelas 20 declarações, o que representa um valor médio de 490 milhões de euros por declaração. As declarações, só depois identificadas pelo fisco, “estão agora a ser objecto de controlo pela inspecção tributária”. E por estarem em causa “montantes significativos, a matéria foi remetida para a Inspecção Geral de Finanças”, precisou o ministério.
Questionado se, no caso de haver impostos por liquidar, haverá correcções relativamente a anos em que o prazo de liquidação já tenha terminado, o Ministério das Finanças respondeu que “não estão ainda concluídas as investigações em causa”. No entanto, não é de excluir que haja impostos que venham a ser dados como perdidos. A Lei Geral Tributária prevê que o prazo geral para que a AT possa liquidar um qualquer imposto aos contribuintes é de quatro anos, mas prevê também que em certos casos esse prazo possa ser alargado. E um desses casos é mesmo o relacionado com as transferências para offshores.
O prazo de quatro anos passa a ser de “12 anos sempre que o direito à liquidação respeite a factos tributários” relacionados com “país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças que devendo ser declarados à administração tributária o não sejam”, ou seja, quando os factos estão relacionados com o que de forma simplificada se denomina de offshores. Esta alteração só existe na lei desde 1 de Janeiro de 2012.
Com a revisão em alta dos valores relativos a esses anos (2011 a 2014) e somando os valores anteriores e posteriores (2010 e 2015), o total das transferências para offshores ascende a 28.909,6 milhões de euros. Em 2014 deu-se a maior revisão em alta das estatísticas: em vez de 374 milhões, sabe-se agora que esse valor foi afinal de 3806 milhões, uma diferença superior a 900%.
Notícia actualizada a 24 de Fevereiro às 18h36: Corrigido para clarificar que a Lei Geral Tributária prevê que o prazo geral para a AT liquidar um qualquer imposto aos contribuintes é de quatro anos, mas que o prazo é de 12 anos quando estão em causa factos tributários relacionados com territórios sujeitos a um regime fiscal privilegiado.