D. Pedro V, o filho favorito
O príncipe gostava de dar presentes ao pai, mas foi muitas vezes vítima de um ourives pouco sério.
D. Fernando II levava tão a sério a sua colecção de ourivesaria, explica o conservador que agora está a estudar o documento depois de o ter transcrito na íntegra, que decidiu aprender a cinzelar em prata e noutros metais para melhor poder apreciar a dificuldade e o “primor” de execução das peças que ia comprando ou recebendo de presente, sobretudo dos filhos, que parece tratar de forma desigual.
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D. Fernando II levava tão a sério a sua colecção de ourivesaria, explica o conservador que agora está a estudar o documento depois de o ter transcrito na íntegra, que decidiu aprender a cinzelar em prata e noutros metais para melhor poder apreciar a dificuldade e o “primor” de execução das peças que ia comprando ou recebendo de presente, sobretudo dos filhos, que parece tratar de forma desigual.
“Peça lindíssima e raríssima, pelo seu desenho, pela execução e sua grande elegância de forma. É lavor português e óptimo. Dada pelo meu incomparável filho D. Pedro V”, escreve por referência a uma grande salva de prata dourada, aproveitando para elogiar os artífices nacionais e o seu filho mais velho, que a julgar pelo inventário, era o seu favorito. “Ele é um pai muito dedicado, muito próximo dos infantes”, diz Hugo Xavier, lembrando que, dos seus 11 filhos, só três chegaram a adultos. “D. Pedro V era o herdeiro, um príncipe educado para ser rei… Não sei se era o favorito, mas como morre cedo, a sua memória é muito acarinhada pelo rei. D. Luís, que sucede ao irmão, também é um grande apoio para o pai, que diz muitas vezes que ele é enganado quando compra ourivesaria a um tal Mayer, em Dresden.”
Entre as peças que D. Luís oferece ao pai está, por exemplo, uma salva com pé em prata dourada que o rei faz questão de sublinhar que é uma “reprodução alemã de uma obra de [Benvenuto ] Cellini”, deixando bem claro que os artífices tinham copiado o trabalho de um dos grandes mestres do Renascimento.
No século XIX, explica Xavier, há grandes antiquários a comprar originais de ourivesaria para depois promover a contrafacção – “a indústria de falsos é incrível” – e é, por isso, natural, que um comprador menos experiente acabasse por comprá-los. D. Fernando, que recebia com regularidade catálogos de leilões e exposições estrangeiros, chega a referir-se ao negociante nestes termos: “[Esta peça vem da] fábrica de objectos moderno-antigos que tem o dito Mayer, que não hesito em chamar grande tratante. El rei D. Luiz tem sido e é grande vítima dele.”
Por vezes, o rei explica porque não conseguiu fazer uma ficha mais completa de determinada peça - “é difícil determinar-lhe a época” e “ignoro-lhe a proveniência” – e porque não pode provar a sua autenticidade: “Esta peça foi comprada por antiga em Haia […] porém não assevero que o seja”, diz sobre um ovo de avestruz com pé e tampa em prata, encimada pela deusa da caça, Diana; e “trabalho alemão de pouco merecimento […] não posso garantir a originalidade desta peça”, acrescenta a propósito de outro presentes de D. Luís.
Ao longo do documento são notórias as preocupações de detalhe do monarca, que chega a dar conta de acrescentos às peças e de anteriores proprietários (como a Casa de Borba), a identificar quem lhas vendeu (o ourives Raymundo Pinto aparece várias vezes) e a procurar datá-las, apontando-lhes defeitos, qualidades e afinidades de estilo (“desenho quase gótico”, “renaissance”, “rocaille”), nunca se esquecendo de escrever, no fim de cada entrada, que lhe pertencem (“Prop. minha). Nalgumas diz até quanto pagou, referindo mais do que uma vez que as achou caras.
Embora sejam muito mais frequentes os elogios, quer denigra um objecto, quer o valorize, D. Fernando é quase sempre peremptório: “a prata é de péssimo gosto”, “notável lavor português de belo desenho”, “uma pérola para os entendedores” ou “obra prima e digna de servir a um rei”. Mesmo que servir um rei nem sempre significasse estar num lugar de destaque à mesa, sobre um aparador ou na parede. Pelo documento ficamos a saber que tinha na sua colecção uma pequena salva de prata que pertenceu ao escritor Almeida Garrett que era usada para recolher a cinza dos charutos – “o rei fumava muitíssimo e fazia grandes despesas na Casa Havaneza”, diz Xavier – e um cálice de prata, com dois lápis-lazúli embutidos, que tinha sempre sobre a mesa, esclarece D. Fernando, “para flores, ou para pintar, ou dar água aos cãezinhos”.