Marijuana: cuidado com as imitações

As versões sintéticas da marijuana, populares e baratas, que consistem em folhas secas pulverizadas com uma mistura de químicos, podem causar sérios problemas de saúde, alertam cientistas.

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Anthony Bolante/Reuters

Convulsões, psicoses, dependência e morte são os possíveis efeitos secundários das versões de marijuana sintética, populares e baratas, segundo um estudo publicado este mês. Pior era difícil. Segundo os investigadores, apesar de imitar o efeito da marijuana, drogas como a K2 ou a Spice activam o cérebro de maneira muito diferente. Por outro lado, uma outra equipa de cientistas que estudou a marijuana “normal”, ou cannabis, vendida para fins medicinais concluiu que esta substância pode ajudar nas desintoxicações de opiáceos como a heroína, atenuando os efeitos de privação.

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Convulsões, psicoses, dependência e morte são os possíveis efeitos secundários das versões de marijuana sintética, populares e baratas, segundo um estudo publicado este mês. Pior era difícil. Segundo os investigadores, apesar de imitar o efeito da marijuana, drogas como a K2 ou a Spice activam o cérebro de maneira muito diferente. Por outro lado, uma outra equipa de cientistas que estudou a marijuana “normal”, ou cannabis, vendida para fins medicinais concluiu que esta substância pode ajudar nas desintoxicações de opiáceos como a heroína, atenuando os efeitos de privação.

No início da década de 2000, não há muito tempo, estas novas drogas apareceram na Europa vendidas em pequenas saquetas como pot-pourri e incenso e, para contornar a lei, incluíam um aviso para o facto de não serem para consumo humano.

Curiosamente, reza a história, que a receita para o fabrico desta versão sintética da marijuana estava num artigo científico que incluía instruções detalhadas sobre um produto desenvolvido em laboratório que queria imitar os efeitos dos canabinóides para fins terapêuticos. O químico John W. Huffman, na altura investigador na Universidade de Clemson, na Carolina do Sul (EUA), nunca imaginou as consequências desta partilha de conhecimento. Hoje, os pacotes de folhas secas borrifadas com um cocktail de químicos circulam por todo o mundo com vários nomes, mas as designações K2 e Spice são as mais populares. Em relação à marijuana “normal”, estas versões são bastante mais baratas, mais potentes e, por outro lado, não são detectadas nos testes de despistagem de drogas.

“Os compostos sintéticos de canabinóides são frequentemente vendidos como alternativas seguras à marijuana, porque, devido às suas estruturas químicas, não são detectados nos testes de despistagem de drogas. Esta característica fez com que se tornassem muito populares em grupos que querem evitar a detecção, como os adolescentes ou militares”, refere o comunicado sobre um artigo de investigadores da Universidade de Ciências Médicas do Arkansas, nos EUA, publicado na revista Trends in Phamacological Sciences.

Neste trabalho de revisão sobre os efeitos destas substâncias, coordenado por Paul Prather, nota-se que vários relatórios clínicos relatam “uma série de efeitos adversos agudos e de longo prazo causados pelos compostos sintéticos de canabinóides, incluindo convulsões, lesões nos rins, toxicidade cardíaca, acidentes vasculares cerebrais, ansiedade, psicose em indivíduos susceptíveis, bem como habituação e dependência”.

De Red Giant a Mr Bad Guy

No artigo intitulado “Droga sintética: Não é a marijuana do teu avô”, os investigadores explicam como esta droga actua no cérebro, embora sublinhem que muitos dos mecanismos desencadeados por esta droga permanecem por esclarecer. Assim, os compostos sintéticos tentam imitar a marijuana, que se sabe que através do seu principal “ingrediente” (o tetra-hidrocanabinol) consegue activar dois importantes receptores nas células (o CB1 no cérebro e sistema nervoso central e o CB2 no sistema imunitário). Para o estudo destes receptores, os cientistas desenvolveram substâncias químicas que os conseguiam activar. No entanto, estes compostos canabinóides sintéticos são quimicamente muito diferentes da marijuana. Conseguem, por exemplo, activar o receptor CB1 com uma eficácia que não está ao alcance da versão natural da marijuana. Esta capacidade dos compostos sintéticos, alertam os cientistas, pode significar que activam outros receptores celulares além do CB1.

A verdade é que há cada vez mais problemas associados ao consumo de marijuana sintética. Em Julho do ano passado, o Departamento de Saúde e Higiene Mental de Nova Iorque emitiu uma nota especial só sobre esta droga. No documento, as autoridades de Saúde relatavam que em apenas dois dias tinham sido assistidas 130 pessoas nos serviços de urgência com efeitos adversos após o consumo de K2. Feitas as contas desde o início de Janeiro de 2015, em Julho de 2016 estes serviços somavam mais de oito mil visitas às urgências por causa de canabinóides sintéticos. Em 2015, adiantavam, dez destas pessoas morreram por causa da K2. Nas ruas, a K2 ou a Spice surgem com nomes como Smacked, Scooby Snax, Green Giant, Red Giant, Mr Bad Guy, Trippy ou Kick, entre outros. Na Rússia, em 2014, o consumo de marijuana sintética foi associado a 600 casos de intoxicação e 15 mortes num período de duas semanas.

Na Europa, também há registo de problemas. Segundo o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA, na sigla em inglês), em 2016 estavam a ser monitorizados “mais de 160” canabinóides sintéticos na Europa. Sobre os efeitos na saúde pública o observatório nota que os surtos são mais raros na Europa. Ainda assim, em 2015, na Polónia, esta droga levou 200 pessoas às urgências hospitalares em menos de uma semana.

Travar epidemia de opiáceos

A marijuana está no título de um outro artigo publicado também este mês noutra revista do grupo da Cell, a Trends in Neurosciences. Desta vez, não se trata de qualquer imitação sintética. Os investigadores analisaram os possíveis benefícios da marijuana vendida para efeitos medicinais no tratamento de dependências dos opiáceos. Segundo concluíram, a substituição dos fármacos pela marijuana pode ajudar nas desintoxicações de heroinómanos, atenuando os efeitos de privação. Mas, mais do que isso, os autores do artigo defendem que a marijuana deve ser estudada como possível alternativa para o tratamento da dor crónica, substituindo os fármacos com opiáceos como a morfina ou oxicodona. Esta poderá ser uma solução para a actual epidemia de opiáceos, sugerem.

Sabe-se que os opiáceos e os canabinóides regulam a percepção da dor, mas também que actuam em diferentes partes do cérebro e têm formas diferentes de comunicar a sensação de dor. Desta forma, acredita-se que os canabinóides têm um efeito na dor crónica provocada pela inflamação e os opiáceos são mais eficazes no alívio da dor aguda. Porém, também se sabe que os opiáceos causam muito rapidamente uma perigosa dependência. De acordo com os dados citados no artigo, nos EUA existem cerca de 2,5 milhões de pessoas diagnosticadas com um distúrbio de abuso de opiáceos e 80 pessoas morrem todos os dias por overdose dessas substâncias.

“Se olharmos para as duas drogas e para o local onde se situam os seus receptores, os opiáceos são muito mais perigosos, em parte pelo perigo de overdose — os receptores de opiáceos são muito abundantes na área cerebral que regula a nossa respiração e por isso podem facilmente desligar o centro que nos faz respirar com uma dose elevada”, explica num comunicado a neurobióloga Yasmin Hurd, da Escola Icahn de Medicina do Monte Sinai, em Nova Iorque (EUA), que assina o artigo.

Neste trabalho, a investigadora defende que os canabinóides, extractos de cannabis que são legalmente vendidos para fins medicinais nos EUA, podem ser úteis para tratar os sintomas de abstinência dos consumidores de heroína. Apoiada num pequeno estudo-piloto em humanos, Yasmin Hurd refere que um canabinóide específico (o canabidiol) conseguiu reduzir a ansiedade relacionada com a privação de heroína.

O rastilho da legalização

Actualmente, existe já um amplo consenso sobre os benefícios da marijuana em doentes com esclerose múltipla, ou que estejam a fazer tratamentos com quimioterapia para cancro ou com dor crónica. Porém, as barreiras à investigação nesta área e a experiências com humanos podem estar a ocultar outras vantagens terapêuticas, defende a investigadora.

“Temos de ser mais receptivos ao estudo da marijuana, porque esta planta tem componentes que parecem ter propriedades terapêuticas, mas sem investigação e ensaios clínicos estamos a deixar que os preconceitos guiem as decisões e políticas”, refere Yasmin Hurd. E conclui: “É uma das poucas vezes na história que estamos a deixar que leigos e políticos decidam se uma coisa é medicinal ou não. Se queremos dizer que a marijuana é medicinal, temos de ter condições para o provar.”

Apesar das restrições na investigação nesta área, existem já provas suficientes para que alguns países avancem na legalização da cannabis para fins terapêuticos. Na Europa, o exemplo mais recente é a Alemanha, que em Janeiro aprovou uma lei que autoriza o uso clínico da cannabis para pessoas com doenças crónicas e para alívio de sintomas de doenças como hepatite, sida, Parkinson, glaucoma e cancro. A lei entra em vigor já no próximo mês de Março. A Itália e a República Checa são outros dos países que legalizaram a cannabis para fins terapêuticos.

Em Portugal, o Bloco de Esquerda anunciou este mês que em 2017 vai voltar a avançar com uma proposta de legalização da cannabis para fins terapêuticos e também recreativos. 

Os peritos já reagiram: João Goulão, director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), afirmou que não há nada a opor relativamente ao uso clínico da cannabis, mas quanto ao uso recreativo será necessário esperar mais tempo para avaliar os resultados das experiências no Uruguai e em vários estados norte-americanos.

O novo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, adiantou que pediu ao Conselho Nacional para a Política do Medicamento que estudasse a pertinência de se avançar com uso clínico da cannabis.