O problema dos diagnósticos psiquiátricos feitos pela net, em casa
A medicação, se dada no desconhecimento da história pessoal e das circunstâncias da criança ou jovem, pode facilmente adiar o reconhecimento de que pode haver mais, muito mais para perceber.
Todos os estudantes de medicina se lembram de ter reconhecido por vezes, neles mesmos, alguns sintomas das doenças que vão lendo nos livros e revistas médicas. É quase inevitável que isso aconteça. E pode ser até positivo para quem tem mais tarde de saber perceber essa inquietação nos outros.
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Todos os estudantes de medicina se lembram de ter reconhecido por vezes, neles mesmos, alguns sintomas das doenças que vão lendo nos livros e revistas médicas. É quase inevitável que isso aconteça. E pode ser até positivo para quem tem mais tarde de saber perceber essa inquietação nos outros.
O ‘problema’ é que os outros agora não são os utentes, são os pais deles, que ‘surfando’ na net têm acesso fácil à informação médica. A maneira como tudo foi ‘medicalizado’, ‘psicologizado’ e até ‘psiquiatrizado’ nos tempos globais, e a ansiedade com que são lidas estas listas de sinais e sintomas por pais obviamente impreparados, podem fazer sugerir um diagnóstico, muitas vezes muito fácil de pôr mas muito difícil de tirar. Hiperactividade, Síndrome de Asperger e Doença Bipolar são exemplos demasiado frequentes no nosso dia-a-dia. Infelizmente.
A origem da classificação diagnóstica
A divulgação destas patologias terá começado com Robert Spitzer, convidado para preparar a 2.ª edição do DSM, o catálogo de doenças dos psiquiatras americanos. Que conheceu um enorme êxito. Spitzer acompanhou durante décadas o fracasso das sucessivas psicoterapias da sua mãe, e chegou a dizer que ‘desde sempre gostou de classificar pessoas’. Foi isso que ele fez de facto ao coordenar um grupo grande de médicos, encarregá-los de reunir conjuntos de manifestações psicológicas e atribuir-lhes relevância diagnóstica e estatuto psiquiátrico.
A necessidade era grande, como lembrava Eric Kandel, prémio Nobel da Medicina, de fazer os técnicos de saúde mental procurar critérios objectivos de classificação das perturbações e criar uma linguagem comum que permitisse comparar, discutir entre pares e investigar. Algo que a prática psiquiátrica da altura chegava a desaconselhar. Mas o que se perdeu nesta ‘fúria’ classificadora de manifestações, consideradas agora patológicas, foi a necessidade de procurar as causas das coisas pela anamnese e pela compreensão dos contextos e da história pessoal de cada um. Tudo foi isso varrido para debaixo do tapete, e o importante seria apenas atribuir estatuto nosológico. A partir daí surgiriam, como surgiram, as directrizes de tratamento.
Da classificação diagnóstica à intervenção
Quem olha para a classificação internacional destas perturbações perceberá o que resultou desta não procura das causas dos sintomas: coisificação em estatuto de doença, necessidade de intervenção farmacológica, eternização dos problemas ao longo da vida. As dificuldades passam a ter um nome, a situação tem tratamento farmacológico, mudar algo no ambiente da criança ou jovem não é tão prioritário.
Um exemplo que se encontra repetidamente é mesmo o de pais que procuram ajuda para as mudanças súbitas de humor e as alterações de comportamento, em casa e na escola, dos seus filhos. E daqui até trazer um conjunto, por vezes escrito, de sintomas à consulta, e iniciar terapêutica neuroléptica (anti-psicótica) ou moduladora do humor, está um curto passo fácil de dar, e muito frequente.
A informação considerada relevante, em face das birras repetidas, não é o que as pode ter provocado, como se habituaram os adultos a reagir a elas, ou que papel potenciador pode ter o próprio alarme que provocam em casa e na escola. Relevante é apenas a sua duração, manifestações e frequência, com informações rigorosas cronometradas e até registos vídeo gravados no telemóvel. A pergunta já não é porquê, é quanto. A violência de alguns dos episódios (‘quantas pessoas foram precisas para agarrar’) apaga mesmo a memória da maneira como tudo surgiu.
A medicação pode e deve ser usada, mas nunca sem um esforço continuado e sempre repetido de questionar o que se está a fazer. Porque se dada no desconhecimento da história pessoal e das circunstâncias da criança ou jovem facilmente ignora o reconhecimento de que pode haver mais para perceber. E esquecer todas as outras coisas, como a questão dos afectos que precise de ser abordada, ou as rotinas que tiram o tempo de sono numa altura em que há cada vez mais ruído, e imagem, e se adormece mais tarde. Medicar porque as manifestações ocorrem com uma frequência superior a x dias por semana durante mais de x meses, como sugerido pelas tabelas diagnósticas, será então apenas desistir de pensar, e de tentar mudar, o que pode estar por detrás delas. Para medicar de forma continuada é preciso que haja esta reflexão.
(*) Neurologista Pediátrico. CADIn - neurodesenvolvimento e inclusão